segunda-feira, 2 de novembro de 2009

" Terapeutas de Alexandria "

No livro , " Saúde e Plenitude " ( Summus Editorial ) de Roberto Crema ( Vice-Reitor da Unipaz ) , na pág . 141 e seguintes , o autor faz os seguintes comentários a cerca de Ser Terapeuta . : " Respondeu o rabino : o que é Deus ? A totalidade das almas .
Seja lá o que existir no todo , também existe na parte .
Portanto , em cada alma , todas as almas estão contidas . Se eu me transformo e cresço como indivíduo , eu mesmo contenho em mim a pessoa a quem quero ajudar , e esta contém a mim nela . Minha transformação pessoal ajuda a tornar o ele-em-mim melhor e o eu-nele melhor , também . Desta forma fica muito mais fácil para o ele-nele tornar-se melhor . " Reb Pinchas .
" Se vazio , eis tudo . " ( Chuang Tzu ) .
" Ao longo da minha prática como terapeuta e educador , tenho postulado que o encontro é o grande Mestre , veiculo básico da transformação pessoal e transpessoal . Além das engrenagens e automatismos , é através do encontro que nos tornamos plenamente humanos . A arte-ciência do encontro , entretanto , é uma conquista que exige confiança , dedicação e entrega . Exige uma escuta inclusiva , uma visão aberta e um estar na mesma frequência do outro , o que só é possível com a graça do silêncio interior . Nesta qualidade de encontro , poderá se apresentar uma sabedoria além do Eu-Tu , o Terceiro , o Mestre do nós .
É reveladora e tocante uma iluminada passagem de Carl Rogers , ocorrida num de seus seminários , relatada pela médica Rachel Remen : " Ele se propôs a dar uma demonstração de atenção positiva incondicional numa sessão terapêutica . Um dos terapeutas ofereceu-se como voluntário . Quando se voltou para o voluntário , pronto para dar início à sessão , Rogers subitamente se pôs de pé , voltou-se outra vez para nós e disse : Percebo que existe algo que devo fazer antes de começar a sessão . Permito-me saber que sou bastante . Não sou perfeito . Perfeito não será bastante . Mas que sou humano e que isso é o bastante . Não há coisa alguma que este homem possa dizer , fazer ou sentir que eu não possa sentir em mim . Posso estar com ele . Sou bastante . "
Ser bastante é o requisito básico para uma escuta inclusiva , holocentrada . Para ser bastante é preciso ser inteiro e acolher o outro na sua inteireza . Abrir-se à escuta do corpo , da psique e do Pneuma , com o suporte de uma antropologia que dá quarida à integralidade do homem . Ser bastante é não atraiçoar , é não apequenar ; é uma abertura inteligente para a imensidão do fenômeno humano .
Esta escuta requer a virtude do esvaziamento , a arte do Aberto .
Disse Confúcio : ' Torna una a tua vontade . Não ouças com os ouvidos , mas com a mente . Não , não ouças com a mente , mas com o espírito . O ouvir detem-se nos ouvidos ; a mente detemse no reconhecimento ; o espírito , porém , é vazio e segue de perto todas as coisas . O caminho só se avoluma no vazio . O vazio é o jejum da mente .
Uma unidade de encontro , em psicoterapia , além do imago constituída das fantasias mútuas acerca do outro que preexistem ao encontro pessoal , inicia com o primeiro olhar , o ' olá ' , estende-se no tempo-espaço do estar juntos num contexto interativo , de forma ativa e/ou receptiva , encerrando com o último olhar , o ' até breve ! ' ou ' adeus ' . É sempre inusitada , quando estamos em boa saúde psíquica , no aqui-e-agora renovador e transtemporal . Aqui o outro jamais é mal-tratado como ' paciente ' ou ' cliente ' . O encontro não é unilateral e , muito menos , um negócio ; é uma possibilidade palpitante e hesitante , uma delicada probabilidade . Não há seguro ; não se pode forçar , economizar ou apressar o encontro .
Podemos apenas estar disponíveis , abertos , à escuta . O outro , aqui , é considerado um sujeito na mutualidade , um elo na reciprocidade de uma amizade evolutiva , centrada no processo de cura e de individuação . O pacto é de acompanhamento , numa caminhada em direção a Si Mesmo . É enlaçar a mão do outro , simbolicamente , numa atitude de confiança e respeito que anuncia : Você não está sozinho ; vá em direção a você mesmo e eu estarei ao seu lado . Oriente o seu coração para aprender , para conhecer-se e tornar-se o que é , e eu estarei ao seu lado .
Amigo evolutivo , amiga evolutiva , é como denomino as pessoas a quem acompanho , como psicoterapeuta , inspirado no Cosmodrama IV de Pierre Weill , que focaliza o tema das relações evolutivas . Cada unidade de encontro é um artesanato psíquico , uma viagem singular , uma totalidade dialógica única e intransferível . Somos hóspedes na Festa do Encontro , que nos ultrapassa a transmuta .
Necessitei muitos anos nesta jornada para dar-me conta de que cada amigo evolutivo que bate à minha porta é um pedacinho da minha própria alma que necessito escutar , compreender e integrar . Cada pessoa significativa na existência , incluindo-se os inimigos , são pedaços perdidos de nossas almas , à espera de uma escuta e de um reencontro integrador . Assim sendo , os encontros nos devolvem parcelas perdidas de nossa alma comum . Gradativamente , nesta aventura alquímica humana , a alma se amplia . Então , como diz o poeta Pessoa , tudo vale a pena , pois a alma não é pequena .
Nesta abordagem de respeito ao todo humano , o outro jamais é rotulado , amaldiçoado , reduzido a um rótulo patológico . A pessoa é mais vasta que os seus problemas e sintomas . Ninguém é doente ; podemos estar doentes . A doença é passagem ; é devir . Etmologicamente , a palavra inferno significa estar fechado .
Como afirma o rabino Nilton Bonder , o oposto da inveja , esta vivência infernal , é farguinen , um verbo da língue , que pode ser traduzido como abrir espaço . Quando abrimos espaço , o outro pode ser quem é , com seu brilho e sua sombra . Um catecismo rígido seja religioso ou psiquiátrico , com interpretações estreitas e reducionalistas , pode ser um desastroso fator patogênico .
Enclausurar a pessoa nos limites de sua patologia , na estreiteza interpretativa de um rótulo , pode ser iatrogênico , pois a informação tem uma função estruturante . As informações recebidas na primeira infância , por exemplo , são decisivas na estruturação da personalidade , bem o sabemos . O que falamos para o outro tem força de modelagem , que pode aprisionar ou libertar , amaldiçoar ou abençoar ...
... Encarei um fato óbvio : um sofrido ser humano me procurava , dilacerado na alma , no coração e na existência , esparramando a confusão ruidosa de seus fragmentos por todos os lados no meu consultório . Então , com a ajuda de um elegante bisturi analítico , algum tempo depois de uma análise bem sucedida , a pessoa organizava e sofisticava a sua fragmentação pessoal , tornando-se uma expert de suas dissociações : compreendia os seus distintos estados do ego , com os típicos padrões relacionais e jogos , suas gravações precoces e compulsões decorrentes . Claramente percebia que este era um processo últil e necessário . Atordoou-me , entrentanto , a constatação de que a consciência do ser humano na sua inteireza era não só desprezada , como também reprimida , pelo reducionismo atomicista analítico . Onde estava a escuta da Unicidade ? Um ser humano inteiro encontrava-se diante de mim , desde o início , e apenas os seus fragmentos eram ouvidos e considerados . Nada além de miudezas , de memórias biográfias , de secreções do ego , de registros do inconsciente pessoal . A dimensão transpessoal e noética , o numinoso , o essencial , a luz do Ser além das dualidades , o porta-voz restaurador e autêntico da totalidade psíquica estavam literal e metodologicamente banidos do encontro terapêutico . ' Entrar no túnel do inconsciente , sem ter a sensação de que a luz está no final , é perigosa . Basta pensar naqueles para quem o suicídio parece ter sido a conclusão lógica da sua análise , ' admoesta Jean Yves Leloup
Este avassalador insight lançou-me em profunda crise que abalou-me de forma definitiva . Nunca pude voltar a atuar como o convicto e entusiasta analista da minha ingenuidade anterior . A leitura da bibliografia exclusivamente analítica , que antes me supria , passou quase a sufocar-me ; sentia falta de ar ! Como ir além da análise sem nega-la , sem suprimi-la ? O sonho , já relatado , em que o diretor do presídio convocou-me para a síntese , foi a gota final nesse processo de conversão holística . Então , escancarei todas as janelas e avistei as montanhas serenas do Espírito , da psicologia perene . Orientei-me para o Norte do Ser .
O analista é um focalizador das partes constituintes do todo . É sensorial ; investiga a partir dos clássicos cinco sentidos . É racional e lógico ; para analizar , pensamos . É um dissecador de causas , partindo de um postulado mecânico determinista . Atua no estado de vigília , com uma consciência egóica , de identidade pessoal , nos limites da coordenada condicionante tempo-espaço , da realidade consensual ordinária . Associando-se aos elementos do ar , símbolo do pensamento intelectual e do poder da espada que perfura e retalha ; e terra corporeidade , consistência e ponto de apoio material . Abrange as experiências do plano de consciência do cotidiano , ligadas ao corpo físico , referido-se à primeira atenção , ao tonal , segundo a obra de Castañeda . Abrange o plano visível e observável empiricamente . É aperfeiçoado pela via do racionalismo cientifíco e do que , na Universidade Holística , denominamos de holologia , envolvendo estudo , pesquisa e experimentação da abordagem holística . É o instrumento básico da psicologia moderna .
O sintetista centra-se no todo , apreendendo gestalts e atuando como um pontifex , construtor de pontes e a serviço das interconexidades . É intuitivo , uma inteligência do todo que apreende o real de forma maciça e imediata . É transracional , movendo-se no plano do coração , dos sentimentos e valores . É um interprete de sinais , dos oráculos e das sincronicidades transcausais , habitando um universo orgânico , vivo , vibrante . Atua no estado de consciência onírico , do sonho e do transe , penatrando na esfera arquetípica do imaginal , transcendendo a coordenada tempo-espaço , aberto e suscetível aos fenômenos psi , da parapsicologia , e vivências xamanísticas , do domínio transpessoal . Associado aos elementos água , fator de atração e repulsão das emoções ; e fogo , intuição e imaginação criativa .
Abrange os estados não-comuns de consciência , a exemplo das experiências das matrizes perinatais e da dimensão transpessoal , oriundas do método da respiração holotrópica , de Stanislav Grof : o conceito de segunda atenção , o nagual , ligada ao corpo energético ' luminoso ' , descrita por Castañeda , e os chakras do yoga . Abrange o plano sutil , aque temos acesso com a abertura do que Aldous Huxley denominou de ' portas da percepção ' . É desenvolvido através da holopráxis , vivência de caminhos meditativos do despertar , da sabedoria tradicional . É o agente da comunhão mística , e do numinoso , da psicologia perene ...
Esta duas escutas não se antagonizam , como fomos condicionados a crer nestes últimos séculos . Pelo contrário , elas se complementam e se harmonizam , em sinergia , habilitando-nos a uma visão e atuação de integralidade , transdisciplinar ...
A psique irradia e contagia . Assim como nos contagiamos com o vírus de uma doença infecciosa . Assim como nos contagiamos com os vírus de uma doença infecciosa , igualmente estamos expostos ao contágio invisível dos ' vírus psíquicos ' , mentais e emocionais , no âmbito de nossa ecologia interior . Um terapeuta que atua conscientemente como analista e sintetista , precisa submeter-se a uma rigorosa e disciplinada higiene global , do corpo-psique-pneuma .
Precisa aprender a nutrir-se por inteiro , para ser fonte de nutrição da inteireza dos que o procuram . Considero a meditação um nutriente imprescindível , juntamente com os demais cuidados já mencionados , prescristo pelos Terapeutas de Alexandria .
Texto : Roberto Crema
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