sábado, 1 de setembro de 2018

Como Conhecer Deus !

Aforismos iogues de Patanjali 

1. A IOGA E SEUS OBJETIVOS

Ioga significa basicamente "união " . É o antecedente sânscrito da palavra inglesa yoke { jugo , par ,aquilo que une } . Daí , vem a significar método de união espiritual . A ioga é um método - um entre muitos - pelo qual a pessoa pode ligar-se à Divindade , à Realidade que subjaz ao universo aparente , efêmero . Atingir esta união é alcançar o estado da ioga perfeita . O cristianismo tem um termo equivalente , " a união mística " , que expressa idéia análoga .
Bhoja , um dos comentarista clássicos deste aforismo , define o uso da palavra ioga por Patanjali como " um esforço para separar o Atman ( a Realidade ) do não-Atman ( o aparente ) " .
Quem pratica a ioga chama-se ioguim .

2. A ioga é o controle das ondas de pensamento da mente .  

Segundo Patanjali , a mente ( chitta ) é formada de três componentes , manas , buddhi e ahamkar . Manas é a faculdade de registro que recebe as impressões captadas do mundo exterior pelos sentidos . Buddhi é a faculdade discriminatória que classifica estas impressões e reage a elas .
Ahamkar é o senso de individualidade que reivindica essas impressões como suas e as armazenas sob a forma de conhecimento pessoal . Por exemplo , manas diz : " Um grande objeto animado aproxima-se rapidamente " . Buddhi decide : " Aquilo é um touro . Está furioso . Quer atacar alguém " . Ahamkar exclama : " Quer atacar a mim . Patanjali . Sou eu quem vê este touro . Sou eu quem está apavorado . Sou eu quem está a ponto de fugir " . Mais tarde , dos galhos de uma árvore próxima , ahamkar talvez acrescente : " Agora eu sei que este touro ( que não sou eu ) é perigoso. Outros existem que não sabem disso ; é o meu conhecimento pessoal que me levará a evitar este touro no futuro " .
Deus , a Realidade subjacente , é onipresente por definição . Se a Realidade afinal existe , deve estar por toda a parte , deve estar presente em toda a criatura sensitiva , em todo objeto inanimado . O Deus que a criatura traz dentro de si é conhecido na língua sâncrita como Atman ou Purusha , o Eu real . Patanjali refere-se a todo momento a Purusha ( que significa literalmente " a Divindade que mora dentro do corpo " ) , mas nós , ao longo desta tradução , substituiremos este termo por Atman , usados nos Upanishads e no Bhagavad-Gita , sendo provável que os estudantes estejam mais familiarizados com ela . Segundo os Upanishads e o Gita , o uno Atman acha-se presente em todas as criaturas . Segundo a filosofia sanquia , Patanjali acreditava que toda criatura e objeto singular tem o seu Purusha específico , conquanto idêntico . Este ponto de desacordo filosófico não tem importância prática para o aspirante à vida espiritual .
A mente parece ser inteligente e consciente . A filosofia iogue ensina que ela não o é , que não possui mais que uma inteligência de empréstimo .
O Atman é a própria inteligência , a consciência pura . A mente apenas reflete essa consciência , parecendo assim ser consciente .
O conhecimento ou percepção é uma onda de pensamento ( vritti ) que vem à mente . Todo conhecimento é , pois , objetivo . Mesmo o que os psicólogos ocidentais chamam introspecção ou autoconhecimento vem a ser conhecimento objetivo , de acordo com Patanjali , visto que a mente não é o vidente , mas tão-só um instrumento de conhecimento , um objeto da percepção , tal como o mundo exterior . O Atman , o verdadeiro vidente , permanece desconhecido .
Toda percepção desperta o sentimento de individualidade , que diz : 
" Conheço isto " . Mas trata-se do ego falando , não do Atman , do Eu real .
O senso de individualidade é provocado pela identificação do Atman com a mente , os sentidos etc . É como se o bulbo de uma pequena lâmpada afirmasse : " Eu sou a corrente elétrica " , passando então a descrever a eletricidade como um objeto de vidro em formato de pêra , contendo filamentos de metal . Tal identificação é absurda - tão absurda quanto a pretensão do ego de ser o Eu real . No entanto , a corrente elétrica está presente no bulbo da lâmpada , e o Atman está em todas as coisas , em toda a parte . 
Quando um objeto ou um evento do mundo exterior é registrado pelos sentidos , uma onda de pensamento surge na mente . O sentimento de individualidade identifica-se com essa onda . Se a onda de pensamento é agradável , o senso de individualidade considera : " Sou feliz " ; se a onda é desagradável , " Sou infeliz " . Essa falsa identificação é a causa de toda a nossa aflição - pois , mesmo a sensação passageira de felicidade do ego traz ansiedade , um desejo de agarrar-se ao objeto do prazer , preparando assim as possibilidades futuras de sentir-se infeliz . O Eu real , o Atman , permanece para sempre fora do poder das ondas de pensamento , eternamente puro , iluminado e livre - a única felicidade verdadeira , inalterável . Segue-se portanto , que o homem jamais conhecerá o seu Eu real enquanto as ondas de pensamento e o sentimento de individualidade estiverem sendo identificados . A fim de nos tornarmos iluminados , devemos trazer as ondas de pensamento sob controle , de modo que essa falsa identificação possa cessar .
Ensina-nos o Gita que a " ioga " é a quebra de contrato com a dor .
Ao descrever a ação das ondas de pensamento , os comentaristas empregam uma imagem simples - a imagem de um lago . Se a superfície de um lago é varrida pelas ondas , a água toma-se lamacenta , não mais se vendo o fundo . O lago representa a mente e o fundo do lago , o Atman .
Quando Patanjali fala do " controle das ondas de pensamento " , não está se referindo a um controle momentâneo ou superficial . Muitas pessoas acham que a prática da ioga se relaciona com algo como " fazer da mente um vazio " - condição que , se fosse mesmo desejável , poderia ser muito mais facilmente alcançada , pedindo-se a um amigo que nos golpeasse a cabeça com um martelo . Jamais se obtém benefício espiritual algum pela auto violência . Não estamos tentando refrear as ondas de pensamento fazendo em pedaços os órgãos que as registram . Cumpre-nos fazer algo muito mais difícil - desaprender a falsa identificação das ondas de pensamento com o senso de individualidade . Este processo de desaprendizado implica uma transformação completa do caráter , uma " renovação da mente " , como afirma São Paulo .
O que a filosofia iogue entende por " caráter " ? Para explicá-lo , pode-se levar adiante a analogia do lago . As ondas não apenas perturbam a superfície das águas : por uma ação contínua , criam também bancos de areia ou calhaus no fundo do lago . Esses bancos de areia são , naturalmente , muito mais duradouros e sólidos do que as próprias ondas , podendo comparar-se às tendências , potencialidades e estados latentes que existem nas regiões subconscientes e inconscientes da mente . Em sânscrito , são chamados samskaras . Os samskaras são formados pela ação contínua das ondas de pensamento , e criam por sua vez novas ondas de pensamento - o processo funciona nos dois sentidos . Exponha a mente a pensamentos constantes de raiva e ressentimento e descobrirá que essas ondas de raiva formam samskaras de raiva , os quais acabarão por predispô-lo a encontrar motivo para a raiva em qualquer hora do dia . Diz-se que uma pessoa com samskaras de raiva bastante desenvolvidos tem " mau gênio " . A soma completa de nossos samskaras é , de fato , o nosso caráter - em determinado momento . Nunca nos esqueçamos , porém , de que , assim como um banco de areia pode alterar-se e transformar-se com a mudança da maré ou das correntes , também os samskaras podem ser modificados pela introdução de outros tipos de ondas de pensamento na mente .
Já que estamos tratando desse assunto , vale a pena nos reportarmos a uma diferença de interpretação que existe entre a ioga e a ciência ocidental . Nem todos os samskaras são adquiridos durante o curso de uma única existência humana . A criança já nasce com certas tendências presentes em sua natureza . A ciência ocidental tende a atribuir essas tendências à hereditariedade . A psicologia iogue postula que elas foram adquiridas em encarnações anteriores , como consequência de atos e pensamentos há muito esquecidos . Não importa realmente , em termos práticos , qual dessas duas teorias se venha a preferir . A " hereditariedade " , do ponto de vista da ioga , pode ser apenas outra forma de dizer que a alma individual é impelida pelos samskaras existentes a procurar um renascimento em certo tipo de família , de pais cujos samskaras sejam semelhantes aos seus , herdando assim as tendências que ela já possui . O ioguim iniciante não perde tempo querendo saber de onde vieram os seus samskaras , ou há quanto tempo já os possui : ele assume total responsabilidade pelos samskaras e propõe-se modificá-los .
Existem naturalmente muitas espécie de mentes que ainda não se acham preparadas para as práticas mais elevadas da ioga . Se você tiver um físico flácido e descuidado e tentar participar de uma aula para bailarinos , provavelmente causará grande dano a si próprio ; é preciso que comece com alguns exercícios leves . Há mentes que podem ser descritas " dispersas " ; são inquietas , impetuosas e incapazes de concentração .
Existem mentes indolentes , acomodadas , incapazes de pensamento construtivo . Existem ainda mentes que , embora possuam certo grau de energia , só conseguem deter-se no que é agradável : diante dos aspectos desagradáveis da vida , recuam . Mas , qualquer mente , seja qual for sua natureza , pode , em última instância , ser disciplinada e transformada , tornando-se na expressão de Patanjali , " voltada para um só ponto " e preparada para alcançar o estado da ioga perfeita .


3. Desse modo , o homem se conforma à sua natureza real .    

Quando o lago da mente se faz calmo e claro , o homem se conhece tal como realmente é , como sempre foi e sempre será . Reconhece que é o Atman . Sua " personalidade " , sua crença equivocada em si próprio como indivíduo singular , único , desaparece . " Patanjali " é apenas um invólucro externo , como uma capa ou uma máscara , que ele pode assumir ou pôr de lado , à vontade . Um homem assim é reconhecido como uma alma livre iluminada .


4. Em outras ocasiões , quando não se encontra no estado de ioga , o homem permanece identificado com as ondas de pensamento da mente .     

5. Existem cinco espécies de ondas de pensamento , algumas dolorosas , outras não 

Uma onda " dolorosa " , de acordo com a utilização do termo por Patanjali , não parece necessariamente dolorosa ao despontar pela primeira vez na mente ; é uma onda que traz consigo acentuado grau de ignorância , apego e sujeição . De igual modo , uma onda que a princípio parece dolorosa pode na verdade pertencer à categoria das " não dolorosas " , desde que ela estimule a mente no sentido de uma liberdade e conhecimento maiores . Por exemplo , Patanjali qualificaria de " dolorosa " uma onda luxuriosa de pensamento , pois a luxúria , mesmo quando agradavelmente satisfeita gera apego , ciúme e dependência em relação à pessoa desejada .
Uma onda de compaixão , por outro lado , seria qualificada de " não dolorosa "
, pois a compaixão é uma emoção altruísta que liberta os grilhões do nosso próprio egoísmo . Podemos sofrer intensamente ao ver o sofrimento alheio , mas a nossa compaixão nos ensinará a compreensão e , consequentemente , a liberdade .
Esta distinção entre dois tipos de ondas de pensamento é muito importante quando chega à prática efetiva da disciplina da ioga , pois as ondas de pensamento não podem ser controladas todas de uma vez .
Primeiro , temos de dominar as ondas de pensamento " dolorosas " gerando ondas " não dolorosas " . Aos nossos pensamentos de raiva , cobiça e decepção devemos opor pensamentos de amor , generosidade e verdade .
Só muito mais tarde , quando as ondas de pensamento " dolorosas " tiverem sido completamente apaziguadas , é que podemos passar à segunda etapa da disciplina , isto é , ao apaziguamento das ondas " não dolorosas " que criamos voluntariamente .
A ideia de que temos afinal de dominar mesmo aquelas ondas de pensamento que são " boas " , e " autênticas " pode parecer à primeira vista chocolate a um estudante acostumado com a concepção ocidental de moralidade . Mas um pouco de reflexão lhe mostrará que isso tem de ser assim mesmo . Até em suas aparências mais belas e em suas manifestações mais nobres , o mundo exterior é ainda superficial e efêmero . Não é a Realidade fundamental . Devemos olhar através dele , não para ele , a fim de divisarmos o Atman . Claro , é melhor amar do que odiar , é melhor partilhar do que acumular , é melhor dizer a verdade do que mentir . Mas as ondas de pensamento que motivam a prática dessas virtudes são mesmo assim distúrbios da mente . Todos conhecemos casos de homens enérgicos e valorosos que se envolvem bastante seriamente em grandes movimentos de reforma ou programas de ajuda social e que não conseguem pensar em nada além dos problemas práticos de sua atividade cotidiana . Falta-lhes serenidade de espírito . Ficam cheios de aflição e desassossego . A mente do homem verdadeiramente iluminado é serena - não porque ele demonstre indiferença egoísta diante das necessidades alheias , mas porque conhece a paz do Atman , em todas as coisas , até mesmo sob a capa da miséria , doença , da desavença e da penúria .


6. Eis os cinco tipos de ondas de pensamento : conhecimento certo , conhecimento errôneo , ilusão verbal , sono e memória .

7. Os tipos certos de conhecimento são : percepção direta , inferência e evidência das escrituras .


Tudo o que os nossos sentidos percebem é conhecimento certo , desde que não tenha havido nenhum elemento de engano . Tudo o que inferimos de nossa percepção direta também é conhecimento certo , se nosso raciocínio estiver correto . As escrituras baseiam-se no conhecimento superconsciente obtido pelos grandes mestres espirituais , quando em estado de ioga perfeita . Por conseguinte , são também conhecimento certo ..
Elas representam uma espécie de percepção direta muito mais imediata que a percepção dos sentidos , e as verdades que elas nos ensinam podem ser verificadas por quem quer que tenha alcançado esta visão superconsciente .


8. O conhecimento errôneo é o conhecimento falso e não alicerçado na natureza verdadeira de seu objeto . 

O exemplo clássico fornecido pela literatura iogue é o de um pedaço de corda que se toma por uma serpente . Neste caso , o conhecimento errado nos levará a temer a corda e a evitá-la .


9. A ilusão verbal surge quando as palavras não correspondem à realidade .  

Forma comum de ilusão verbal são as conclusões apressadas . Ouvimos alguém falando e fazemos uma imagem precipitada e inexata de suas intenções . Nos discursos políticos , encontra-se com frequência uma dupla ilusão verbal : o orador acredita que suas palavras correspondem a uma realidade ; a platéia as associa a outra - e ambos estão errados . Expressões como " o espírito da democracia " , " o modo de vida americano " e assim por diante , provocam uma rica safra de ilusões verbais todos os anos nos jornais e no rádio .

10. O sono é uma onde de pensamento acerca de nada .   

Em outras palavras , o sono sem sonhos não significa ausência de ondas de pensamento na mente , mas uma experiência positiva do nada .
Não há , portanto , como confundi-lo com o estado de ausência de ondas da ioga . Se não houvesse nenhuma onda de pensamento na mente durante o sono , não acordaríamos lembrando que nada sabíamos . Como observa S. Radhakrishnan em Indian Philosophy , fulano de tal , após um bom sono , continua a ser fulano de tal , na medida em que suas experiências se incorporam ao sistema que existia no momento em que ele foi dormir .
Elas se ligam ao seu pensamento e não saem voando atrás dos de outro qualquer . Essa continuidade de experiência força-nos a admitir um Eu permanente que subjaz a todos os conteúdos da consciência .


11. Quando os objetos percebidos não são esquecidos e retornam à consciência , tem-se a memória . 

A memória é uma espécie de onda de pensamento secundária . Uma onda de percepção direta produz uma ondulação menor ou uma série de ondulações . A onda de pensamento do sono também produz ondulações menores , que denominamos sonhos . Sonhar é recordar em meio ao sono .

12. As ondas de pensamento são controladas através da prática e do desejo .        
          

13. Prática é o esforço repetido de seguir os exercícios que proporcionam o controle permanente das ondas de pensamento da mente .

14. A prática assenta-se firmemente depois de cultivada por longo tempo , ininterruptamente , com dedicação intensa . 

15. Desapego é autodomínio ; é a libertação do desejo em relação ao que se vê ou se ouve .

Pode-se fazer as ondas da mente fluírem em duas direções opostas - ou rumo ao mundo objetivo ( " a vontade do desejo " ) , ou rumo ao auto-reconhecimento verdadeiro ( " a vontade de libertação " ) . Assim , tanto a prática como o desapego são necessários . De fato , é inútil e mesmo perigoso tentar uma sem o outro . Se tentarmos praticar os exercícios espirituais sem buscar o controle das ondas de pensamento de desejo , nossas mentes tornar-se-ão violentamente agitadas e talvez permanentemente desequilibradas . Se tentarmos apenas um controle negativo e rígido das ondas de desejo , sem despertar ondas de amor , compaixão e devoção que se lhes oponham , então as consequências podem ser ainda mais trágicas . É por isso que certos puritanos austeros suicidam-se inesperada e misteriosamente . De maneira fria , séria , empenham-se em ser " bons " - ou seja , em não alimentar " mais " pensamentos - e quando falham , tal como sói acontecer com todos os seres humanos , não conseguem encarar essa humilhação , que não é mais que o orgulho ferido e o vazio que trazem dentro de si . Nas escrituras taoistas , lemos : " As forças divinas dotam de compaixão aqueles que não gostariam de ver aniquilados " .
Os exercícios espirituais que deveremos praticar serão expostos oportunamente . São conhecidos como os oito " membros " da ioga . Neste contexto , a perseverança é muito importante . Nenhum malogro passageiro , por mais humilhante ou vergonhoso que seja , jamais deverá ser usado como desculpa para abandonar a luta . Se estamos aprendendo a esquiar , não nos envergonhamos de levar um tombo ou de sermos surpreendidos entalados numa posição de cômico embaraço . Damos a volta por cima e recomeçamos . Não devemos nos preocupar com o fato de as pessoas rirem ou zombarem de nós . A menos que sejamos hipócritas , não devemos ligar para a impressão que causamos aos que nos vêem . Malogro algum é na verdade um malogro , a menos que deixemos de uma vez por todas de tentar - pelo contrário , pode ser uma bênção na desgraça , uma lição mais do que necessária .
O desejo é a prática do discernimento . Aos poucos vamos ganhando controle sobre as ondas de pensamento " dolorosas " ou impuras , perguntando-nos : " Por que é mesmo que eu desejo este objeto ? Que benefício duradouro obterei com possuí-lo ? De que maneira sua posse me ajudará a conquistar maior conhecimento e liberdade ? As respostas a tais perguntas são sempre embaraçosas : fazem-nos ver que o objeto desejado não só é inútil como instrumento de libertação , mas é potencialmente prejudicial enquanto instrumento propício à ignorância e à sujeição ; e mais , que o nosso desejo não é na verdade pelo objeto em si absolutamente , mas apenas desejo de almejar alguma coisa , uma mera agitação da mente .
É muito fácil ponderar acerca de tudo isso num momento de calma .
Mas o nosso desapego é testado quando a mente de súbito é varrida por uma enorme onda de raiva , de cobiça ou de avareza . Então , somente através de um esforço decidido de vontade nos lembraremos daquilo que a nossa razão já sabe - que essa onda , o objeto sensorial que a suscitou , o senso de individualidade que identifica a experiência a si própria - são todos igualmente efêmeros e superficiais , não são a Realidade subjacente .
O desapego pode surgir muito lentamente . Mas mesmo seu estágio mais inicial é recompensado por uma sensação nova de liberdade e de paz .
Jamais se deveria concebê-lo como austeridade , espécie de autotortura , algo arbitrário e penoso . A prática do desapego confere valor e significado até ao iniciante mais banal do mais enfadonho dos dias . Ele elimina o aborrecimento de nossas vidas . E , à medida que progredimos e conquistamos crescente autodomínio , vemos que não estamos renunciando a nada de que realmente necessitamos ou queremos - e sim , estamos apenas libertando-nos de desejos e necessidades imaginários . Com esse espírito , a alma cresce até conseguir aceitar , serena e imperturbável , os piores reveses da vida . Cristo disse : " Pois o meu jugo é suave e o meu fardo é leve " - querendo dizer a existência corriqueira e sem discernimento , de apego aos sentidos , é , de fato muito mais penosa , muito mais difícil de suportar do que as disciplinas que nos tomarão livres . 
Parece-nos difícil compreender essa passagem , porque temos sido habituados a conhecer a existência terrena de Cristo como trágica - uma gloriosa e inspiradora tragédia , por certo , mas que não obstante terminou numa cruz . Deveríamos antes nos indagar : " O que seria mais fácil , pender naquela cruz com a iluminação e o desapego de um Cristo , ou nela padecer na ignorância , na agonia e na sujeição de um pobre ladrão ? " E , seja como for , a cruz pode alcançar-nos , estejamos preparados e aptos a aceitá-la ou não .


16. Quando , mediante o conhecimento do Atman , deixa-se de desejar qualquer manifestação da Natureza , tem-se a mais elevada espécie de desapego .    

O desapego não é indiferença - nunca é demais repeti-lo . Muitas pessoas rejeitam as metas da filosofia iogue como " inumanas " e " egoístas ' , pois imaginam a ioga como um distanciamento frio e deliberado de tudo e de todos em prol da busca de salvação pessoal . A verdade é exatamente o oposto . O amor humano é a emoção mais elevada que a maioria de nós conhece . Ele nos liberta , em certa medida , do egoísmo que mantemos em relação a um ou mais indivíduos . Mas o amor humano ainda é possessivo e exclusivista . O amor pelo Atman não é uma coisa nem outra . Admitimos prontamente que é melhor amar as pessoas " pelo que elas realmente são " do que apenas por sua beleza , inteligência , força , senso de humor ou alguma outra qualidade - mas isso não passa de afirmação vaga e relativa . O que as pessoas " realmente são " é o Atman , nada mais nada menos .
Amar o Atman em nós mesmo é amá-lo em toda parte . E amar o Atman em toda parte é ir além de qualquer manifestação da Natureza até a Realidade interior da Natureza . Esse amor é por demais vasto para ser compreendido por espíritos vulgares ; no entanto , ele é simplesmente um aprofundamento e uma expansão infinita do pequeno e limitado amor que todos sentimos . Amar alguém , mesmo ao jeito habitual dos homens , é captar o aparecimento instantâneo e vago , dentro dessa pessoa , de algo formidável , que infunde respeito , eterno . Em nossa ignorância , achamos que esse " algo " é único . Ele ou ela , dizemos de todos .
Isso porque nossa percepção de Realidade é turvada e obscurecida pelas manifestações exteriores - o caráter e as qualidades individuais da pessoa que amamos - e pelo modo como a elas reage nosso próprio senso de individualidade . Entretanto , esse lampejo pálido é uma experiência espiritual válida e deveria encorajar-nos a purificar a nossa mente , preparando-a para aquela espécie infinitamente mais elevada de amor que está sempre a nos aguardar . Esse amor não é inquieto e efêmero , como o nosso amor humano . É firme , eterno e sereno . É absolutamente livre do desejo , pois amante e amado ter-se-ão tornado um só .
Observe esta passagem do Bhagavad Gita ;
                

               As águas fluem continuamente para o oceano .
               Mas o oceano nunca se perturba ;
              O desejo flui para a mente do vidente ,
              Mas ele nunca se perturba .
              O vidente conhece a paz . . .
              Conhece a paz aquele que esqueceu o desejo .
              Ele vive sem ansiedade :
              Livre do ego , livre do orgulho .


17. A concentração sobre um único objeto pode alcançar quatro etapas : exame , discernimento , harmonia radiante e consciência simples da individualidade .    

A fim de compreender este e os aforismos seguintes , devemos analisar a estrutura do universo conforme é exposta pela filosofia Vedanta ( Vedanta é a filosofia que se baseia na filosofia dos Vedas - as mais antigas escrituras hindus ) . Primeiramente , consideremos a realidade básica .
A Realidade , considerada como o Eu mais íntimo de toda criatura ou objeto individualizados , é denominada Atman - como já vimos . Quando a Realidade é referida em seu aspecto universal , denomina-se Brahman .
À primeira vista , isso pode parecer confuso aos estudantes ocidentais , mas o conceito não lhes deve ser estranho . A terminologia cristã emprega duas expressões - Deus imanente e Deus transcendente - que operam distinção semelhante . Muitas vezes , nas literaturas hindus e cristã , encontramos reafirmado este paradoxo : que Deus está tanto dentro quanto fora , instantaneamente presente e infinitamente em toda parte , habitante do átomo e morador de todas as coisas . Mas essa é a mesma Realidade , a mesma Divindade , considerada em suas duas relações com o cosmo .
Essas relações são designadas por duas palavras diversas somente para nos ajudar na reflexão sobre elas . Não implicam qualquer espécie de dualismo . Atman e Brahman são um só .
O que vem a ser este cosmo ? Do que é feito ele ? A filosofia vedanta ensina que o cosmo é feito do Prakriti , substância elementar , indiferenciada , da mente e da matéria . Define-se o Prakriti como a faculdade ou o efeito de Brahman - no mesmo sentido que se diz que o calor é uma faculdade ou um efeito do fogo . Assim como o calor não pode existir separado do fogo que o produz , o Prakriti também não pode existir separado de Brahman . Os dois são eternamente inseparáveis . O último manifesta e produz o primeiro .
Patanjali divergia da Vedanta quanto a isto , acreditando que Purusha ( ou Atman ) e Prakriti fossem duas entidades distintas , ambas igualmente reais e eternas . Uma vez , porém , que Patanjali acreditava também que a Purusha individual podia libertar-se e isolar-se completamente do Prakriti , estava na verdade inteiramente de acordo com a Vedanta , quanto ao propósito e finalidade da vida espiritual .
Por que Brahman produz o Prakriti ? Eis uma pergunta que provavelmente não pode ser respondida com base em nenhuma filosofia elaborada pelo homem . Pois o próprio intelecto humano acha-se contido no Prakriti e , por conseguinte , não pode compreender sua natureza . Um vidente notável pode experimentar a natureza da relação Brahman - Prakriti enquanto se encontra no estado de ioga perfeita , mas não pode comunicar-nos seu conhecimento , usando da linguagem e da lógica porque , de um ponto de vista absoluto , Prakriti não existe . Não é a Realidade - e , contudo , não é outra coisa senão a Realidade . É a Realidade tal como se mostra a nossos sentidos humanos - a Realidade deformada , limitada , mal-interpretada .
Podemos aceitar , como hipótese de trabalho , a garantia do vidente de que isto é assim , mas nosso intelecto vacila , diante do mistério formidável . Carentes de experiência superconsciente , temos de contentar-nos com a linguagem figurada . Voltamo-nos de bom grado aos famosos versos de Shelley :         




     
 Life , like a dome of many coloured-glass ,
Stains the white radiance of etemity .
[ A vida , como cápsula de vidro multicor ,
Macula o alvo esplendor da eternidade ]   

Autor : do livro Como Conhecer Deus 
Aforismos iogues de Patanjali 
Editora : PENSAMENTO