terça-feira, 30 de junho de 2009

Do Mundo Virtual ao Espiritual !

Frei Betto !
Ao viajar pelo Oriente , mantive contatos com monges do Tibete , da Mongólia , do Japão e da China . Eram homens serenos , comedidos , recolhidos em paz em seus mantos cor de açafrão . Outro dia , eu observava o movimento do aeroporto de São Paulo : a sala de espera cheia de executivos com telefones celulares , preocupados , ansiosos , geralmente comendo mais do que deviam . Com certeza , já haviam tomado café , todos comiam vorazmente . Aquilo me fez refletir : " Qual dos dois modelos produz felicidade ? "
Encontrei Daniela , 10 anos , no elevador , às nove da manhã , e perguntei : " Não foi à aula ? " Ela respondeu : " Não , tenho aula à tarde " .
Comemorei : " Que bom , então de manhã você pode brincar , dormir até mais tarde " . " Não " , retrucou ela , " tenho tanta coisa de manhã ... " " Que tanta coisa ? " , perguntei . " Aulas de inglês , de balé , de pintura , piscina " , e começou a elencar seu programa de garota robotizada .
Fiquei pensando : " Que pena , a Daniela não disse : " Tenho aula de meditação ! "
Estamos construindo super-homens e supermulheres , totalmente equipados , mas emocionalmente infantilizados . Por isso as empresas consideram agora que , mais importante que o QI , é a IE , a Inteligência Emocional . Não adianta ser um seperexecutivo se não se consegue se relacionar com as pessoas . Ora , como seria importante os currículos escolares incluírem aulas de meditação !
Uma progressista cidade do interior de São Paulo tinha , em 1960 , seis livrarias e uma academia de ginástica ; hoje , tem sessenta academias de ginástica e três livrarias ! Não tenho nada contra malhar o corpo , mais me preocupo com a desproporção em relação à malhação do espírito . Acho ótimo , vamos todos morrer esbeltos : " Como estava o defunto ? " . " Olha , uma maravilha , não tinha uma celulite ! " Mas como fica a questão da subjetividade ? Da espiritualidade ? Da ociosidade amorosa ?
Outrora , falava-se em realidade : análise da realidade , inserir-se na realidade , conhecer a realidade . Hoje , a palavra é virtualidade .
Tudo é virtual . Pode-se fazer sexo virtual pela internet : não se pega aids , não há envolvimento emocional , controla-se no mouse . Trancado em seu quarto , em Brasília , um homem pode ter uma amiga íntima em Tóquio , sem nenhuma preocupação de conhecer o seu vizinho de prédio ou de quadra ! Tudo é virtual , entramos na virtualidade de todos os valores , não há compromisso com o real ! É muito grave esse processo de abstração da linguagem , de sentimentos : somos místicos virtuais , religiosos virtuais , cidadãos virtuais . Enquanto isso , a realidade vai por outro lado , pois somos também eticamente virtuais ...
A cultura começa onde a natureza termina . Cultura é o refinamento do espírito . Televisão , no Brasil - com raras e honrosas exeções - , é um problema : a cada semana que passa , temos a sensação de que ficamos um pouco menos cultos . A palavra hoje é 'entretenimento ' ; domingo , então , é o dia nacional da imbecilização coletiva . Imbecil o apresentador , imbecil quem vai lá e se apresenta no palco , imbecil quem perde a tarde diante da tela . Como a publicidade não consegue vender felicidade , passa a ilusão de que felicidade é o resultado da soma de prazeres : " Se tomar este refrigerante , vestir este tênis , - usar esta camisa , comprar este carro , você chega lá ! " O problema é que , em geral , não se chega ! Quem cede deselvolve de tal maneira o desejo , que acaba precisando de um analista . Ou de remédios . Quem resiste , aumenta a neurose .
Os psicanalistas tentam descobrir o que fazer com o desejo dos seus pacientes . Colocá-los onde ? Eu , que não sou da área , posso me dar o direito de apresentar uma sugestão . Acho que só há uma saída : virar o desejo para dentro . Porque , para fora , ele não tem aonde ir ! O grande desafio é virar o desejo para dentro , gostar de si mesmo , começar a ver o quanto é bom ser livre de todo esse condicionamento globalizante , neoliberal , consumista . Assim , pode-se viver melhor .
Aliás , para uma boa saúde mental três requisitos são indispensáveis : amizades , auto-estima , ausência de estresse .
Há uma lógica religiosa no consumismo pós-moderno . Se alguém vai à Europa e visita uma pequena cidade onde há uma catedral , deve procurar saber a história daquela cidade - a catedral é o sinal de que ela tem história . Na Idade Média , as cidades adquiriam status construindo uma catedral ; hoje , no Brasil , constrói-se um shopping center . É curioso : a maioria dos shopping centers tem linhas arquitetônicas de catredais estilizadas ; neles não se pode ir de qualquer maneira , é preciso vestir roupa de missa de domingos . E ali dentro sente-se uma sensação paradisíaca : não há mendigos , crianças de rua , sujeira pelas calçadas ...
Entra-se naqueles claustros ao som do gregoriano pós-moderno , aquela musiquinha de esperar dentista . Observem-se os vários nichos , todas aquelas capelas com os veneráveis objetos de consumo , acolitados por belas sacerdotisas . Quem pode comprar à vista , sente-se no reino dos céus . Se deve passar cheque pré-datado , pagar a crédito , entrar no cheque especial , sente-se no purgatório . Mas se não pode comprar , certamente vai se sentir no inferno ... Felizmente , terminam todos na eucaristia pós-moderna , irmanados na mesma mesa , com o mesmo suco e o mesmo hambúrguer do McDonalds ...
Costumo advertir os balconistas que me cercam à porta das lojas : " Estou apenas fazendo um passeio socrático . " Diante de seus olhares espantados , explico : " Sócrates , filósofo grego , também gostava de descansar a cabeça percorrendo o centro comercial de Atenas . Quando vendedores como vocês o assediavam , ele respondia : Estou apenas observando quanta coisa existe de que não preciso para ser feliz . "


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A Busca do Divino no Homem Ocidental ! Parte 1

O Homem moderno vive um drama : Matou um Deus que lhe faz falta .
" O ocultismo experimenta actualmente um renacismento sem precedentes , quase obscurecendo a luz do espírito ocidental . Não penso em nossas academias e seus representantes . Sou médico e lido com pessoas simples . Sei , por isso , que as universidades não são mais fonte de conhecimento . As pessoas estão cansadas de especialização científica e do intelectualismo racional. Eles querem ouvir a verdade que não limite , mas amplie ; que não obscureça , mas ilumine ; que não escorra como água , mas que penetre até aos ossos . " C . G . Jung
A tese central deste texto é a reiteração de uma idéia históricamente recente , mas já mil vezes formulada , por mil agentes diferentes , em milhares de contextos diferentes , servindo interesses diferentes e muitas vezes contraditórios : o homem das sociedades ocidentais modernas perdeu a conexão com o sagrado e precisa de novas referências espirituais . Precisa de novos valores .
Precisa de um novo Verbo que funde ontologicamente o seu lugar no mundo . Precisa de redescobrir os porquê , os como , os para quê ; precisa de redescobrir (ou relembrar ) as respostas às eternas perguntas que ao longo da história têm servido de ponto de partida , e fundamento , a toda a interrogação metafísica : Quem sou eu ? De onde venho ? Para onde vou ? O que posso esperar ? O que devo fazer ? Qual é o sentido da vida ? - porque , afinal , essas são inquietações comuns a todos os homens sem excepção , de todos os tempos e lugares . Dir-se-ia mesmo que correspondem , mais do que a uma inquietação , a uma necessidade profunda e intrinsecamente humana . Daí a sua intemporalidade - e a sua recuperação - numa época histórica em que valores , consciências e visões do mundo estão em crise profunda .
Esta necessidade assumiu , nas sociedades tradicionais , a forma de uma modalidade religiosa da existência humana . A história das religiões , desde a mais primitiva até a mais elaborada , é composta por diversas manifestações de realidades sagradas , aquilo que Mircea Eliade denomina de " hierofanias " ; manifestações de algo de " ordem diferente " - de uma realidade que não pertence ao nosso mundo - em objectos que fazem parte integrante do nosso mundo " natural " , " profano " .
Para o homem religioso das sociedades tradicionais , toda a Natureza é susceptível de se revelar como sacralidade cósmica . O cosmo na sua totalidade se pode tornar uma hierofania . O homem das sociedades arcaicas tem a tendência para viver o mais possível no sagrado ou muito perto dos objectos consagrados , " em contacto " com o sagrado , num estado de eterno " encantamento " que pauta a sua relação com o mundo à sua volta e consigo próprio .
Para os " primitivos " , o sagrado equivale ao poder , e portanto à realidade por excelência . O sagrado está saturado de ser , pois significa ao mesmo tempo realidade , perenidade e eficácia . O sagrado funda ontologicamente o real : atribui um lugar e uma explicação à experiência humana histórica e contingente , e dita a sua forma de organização . E é a esta luz que são lidas as próprias mudanças que ocorrem no desenrolar factual dos acontecimentos , assegurando-lhes , assim , coerência e inteligibilidade .
O homem moderno vive , em contrapartida , num mundo dessacralizado , e sente por isso uma dificuldade cada vez maior em reencontrar as dimensões existenciais do homem religioso das sociedades arcaicas . O homem moderno não tem como fundar e ligitimar o seu lugar no mundo , um topos a partir do qual as suas acções possam ser legítimas , significativas , eficazes - numa palavra , reais .
O homem moderno precisa de fundar a sua experiência em algo que a legitime , a oriente e lhe confira sentido . Se não se reconhecem valores transcendentes , que sirvam de instância fundadora à existência humana na sua múltipla e complexa variedade de níveis , domínios e actividades , torna-se impossível qualquer estrutura axiológica e cai-se no relativismo de valores : se não há uma direcção " certa " para a acção ( i.e.,que seja ditada por uma instância superior ao subjectivismo do homem ) , qualquer direcção é boa ou , pelo menos , qualquer direcção " serve " . Se não há um lugar atribuído ao homem por uma instância transcendente , que lugar vai ele ocupar ?
Tentar resolver este dualismo pelo intelecto e pelo uso da razão ( e é essa a principal razão da crise de valores do homem moderno ) não conduz a lado nenhum . Não existe tal coisa como um homem puramente racional ; o que existe , quando muito , é a parte racional de um homem que é também o seu instinto e o seu inconsciente , a parte de si que ainda não veio à consciência e que por isso permanece " enterrada " nas suas profundezas , sem ter como integrar a parte racional do homem , - influenciando-a , no entanto , sem se deixar revelar .


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A Busca do Divino no Homem Ocidental ! Parte 2

Os contributos de Lacan , Freud , Jung e de outros pioneiros da psicanálise vieram aliás " desmontar " a noção da " objectividade " , que o sujeito pensante reclamava para si e cuja legitimidade teria ido buscar ao edifício cartesiano , ao demonstrarem o papel preponderante que o inconsciente joga no psiquismo humano .
O racionalismo que caracteriza a nossa modernidade , profundamente devedora da iluminismo do século das luzes ( a promissora " Aufklarung " ) e herdeira do pensamento grego , não permite abranger a totalidade da experiência humana e não pode ir mais além do que um nível " mental " ou intelectual de compreensão do mundo . Por quê ? Não só pela preponderância do psiquismo humano face ao seu lado " racional " , mas também porque a mente tem , em si própria , o germem da sua própria limitação : é dual , funciona por contraste e por comparação , estabelece relações entre as coisas , mas não tem como subsumir-se à - ou melhor , elevar-se acima da - dualidade . O maniqueísmo ideológico que insiste em classificar definitivamente as coisas em boas ou más , pretas ou brancas , materiais ou espirituais , é uma perversão de uma mente que é redutora porque absolutiza e radicaliza os opostos . Porque para que essa mente possa funcionar é necessário pressupor um princípio lógico de não-contradição : uma coisa não pode ser e não ser ao mesmo tempo . Racionalmente , os opostos não podem conviver porque se excluem mutualmente .
Ora , sabemos que nada é absolutamente só e apenas essa coisa - verdade recorrente que descobrimos nas conclusões recentes da física quântica ( ao afirmar , por exemplo , que a matéria é simultaneamente matéria e energia ; que a energia assume simultaneamente a forma de onda ou de partícula ; que o facto de haver um sujeito observador influi no comportamento do objeto observado - conhecida , está última ideia , como o " princípio da incerteza " , formulado por Heisenberg ) . Também descobrimos esta verdade no taoísmo , filosofia milenar que postulava o princípio da complementaridade dos opostos ( a coincidentia oppositorum de que fala Jung e antes dele todas as tradições de alquimistas e esoteristas ) . Até ao nível do próprio senso comum podemos encontrar esta ideia - utilizemos duas imagens perfeitamente evidentes para qualquer pessoa : a noite traz em si a semente do dia que começará a " nascer " quando esta atingir o seu auge , e portanto dia e noite são inseparáveis ; não faria sentido eu estar a mentir se não existisse uma verdade que evito e de que me estou a desviar - posso mentir porque há uma verdade que me assegura a mentira . Uma coisa só existe e ganha sentido por referência ao seu oposto . Vemos , assim , como qualquer ideia contém em si o seu próprio oposto em potência e como são inseparáveis .
Mas a aposta feita no racionalismo , acreditar que o intelecto terá o poder de nos revelar a totalidade do mundo e do homem , e assim apreender-lhe a realidade , não é específico do mundo actual - no entanto , o que caracteriza a viragem específica da modernidade é a subordinação da maioria das dimensões da vida individual e da vida colectiva à dimensão produtiva , voltando-as assim a uma definição predominantemente económica da razão ; a própria validação da racionalidade submetida , pois à eficácia utilitária do saber e da acção .
A semelhança do mundo moderno que " cortou " com a religiosidade tradicional instaurando o pensamento racional para chegar à verdade , os filósofos gregos " cortaram " com o pensamento mágico-religioso e místico do Médio e Extremo Oriente que imperava na altura e que , pela sua simplicidade ( estreitamente ligado aos elementos naturais , e sem mitologias , cosmogonias ou divindades elaboradas ) , seria talvez a religião mais " simples " que se poderia conhecer .
Talvez ao edifício filosófico e lógico aristotélico seja imputável parte da responsabilidade por esta " fé cega na razão " , característica da Grécia e recuperada pelos pensadores do renascimento - intensificada até chegar à situação-limite a que o homem moderno chegou ( a própria expressão que empregamos , " fé cega na razão " , traduz bem o carácter da modalidade da experiência humana moderna : substitui-se " deus " pela " razão " que tudo pode - supostamente - conhecer ) ; o edifício aristotélico , dizíamos , pode ser responsabilizado pela crença ilimitada no raciocínio e na lógica , ao afirmar como postulado e condição sine qua non de cognoscibilidade que " uma coisa não pode ser e não ser ao mesmo tempo " . Parafraseando : se A é A , então só pode ser A e não pode ser não-A . É indispensável que aceitemos que A é imutável , parcial , sempre igual a si mesmo e isolado do resto do mundo para que o possamos conhecer com segurança .
A dicotomia entre " ser e não ser " sempre minou todo o pensamento ocidental desde a aurora helénica ; sempre presente , e por vezes denunciada , como por exemplo no caso da célebre locução de Hamlet : " Ser ou não ser , eis a questão ! " , a resolução da dicotomia ontológica que consistiu na radicalização dos opostos estava irremediavelmente embutida na cultura ocidental : tanto que o ocidente pouco lúcido viria a repetir essa frase de William Shakespeare vezes sem conta , como se revelasse uma verdade filosófica profunda . Afinal , e temos as mais recentes descobertas da física a suportar este argumento , ela não é mais do que um grande equívoco ontológico . Como afirmou o mestre taoísta Lao-Tzu , " ser e não ser são os dois pólos de uma mesma curva " : a questão não é " ser ou não ser " , sim " ser e não ser " . Uma verdade da sabedoria oriental , ensinada ao longo de várias gerações cujos últimos mestres viveram 2000 anos antes do Senhor Jesus , o Cristo .


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A Busca do Divino no Homem Ocidental ! Parte 3

Até agora , dissertámos um pouco sobre a relatividade - a dualidade - de uma mente que para conhecer tem de isolar , de classificar , de dissecar , de proceder enfim por análise , por dedução , indo do mais geral para o mais concreto , e que o homem tem utilizado para afirmar e desbravar os mistérios do mundo . Ora , para perceber toda a complexidade do homem , do mundo e das leis que o regem , há que utilizar faculdades outras que não o raciocínio analítico . Como escreveu Novalis , poeta alemão do final do século XVIII , " a ciência é apenas metade ; a outra metade é a fé " .
O grande drama do homem moderno é não ter valores transcendentes que expliquem o seu lugar no mundo , que dêem sentido à sua experiência , seja prazerosa , seja de sofrimento - e todos sabemos como a parte maior de intolerabilidade do sofrimento vem de não percebemos o seu sentido ( se fôssemos alquimistas , diríamos que o sofrimento é " fogo " no laboratório que é a nossa experiência humana , destinado a alquimizar o que de nós há de mais denso e transformá-lo em algo de mais subtil : sofrendo mas integrando conscientemente toda a experiência vivida , alquimizaríamos o que há de material e instintivo em algo de luminoso e espiritual - a lenta ascensão da consciência humana , ou - simbolicamente - a transformação do " chumbo " em " ouro " ) .
Mas mais importante , e complementar deste quadro de falta de valores transcendentes , é o facto de o homem insistir em substituir a dimensão de sagrado que perdeu por uma razão fragmentária , e torná-la única instância legitimadora de toda a acção e entendimento do mundo ; insuficiente , porém , e como vimos , para apreender a total complexidade do homem total - única via de acesso , e de reconhecimento , ao sagrado . Não há dúvida de que a ciência é um utensílio de valor inestimável , mas tem limitações e não deve ser tomada como a arauta da verdade e da plena realização do homem no mundo : " a ciência deve servir e erra somente quando pretende usurpar o trono ( ... ) é um instrumento da nossa compreensão e só obscurece a vista quando reinvindica para si o privilégio de constituir a única maneira adequada de apreender as coisas " ( Carl Jung ) .
Veremos em seguida algumas das consequências da absolutização da razão no decurso da história , e de como a sociedade moderna é o produto dos critérios racionalistas que o iluminismo nos propôs .
Três consequências exemplares da absolutização do uso da razão .
A identidade problemática !
No início era o Locutor Primodial , porque no início era o Verbo . Quando esse Locutor Primeiro era seguro ( " Deus fala no mundo " ) , a atenção virava-se para o discernimento dos seus enunciados , para os mistérios do mundo . Mas quando esta certeza se pertuba com a pertubação das instituições religiosas que a garantiam , a atenção volta-se para a possibilidade de encontrar substitutos ao único locutor : Quem vai falar , e a quem ? Dizendo o quê ?
E porque perde o seu lugar como sujeito passivo , lugar conferido pela organização de um cosmos , que o indivíduo nasce como sujeito activo , responsável pelo seu próprio destino . Já não se trata de ouvir e decifrar as mensagens divinas - e agir em concordância - , mas de cada um assumir a responsabilidade pela criação do próprio destino , em interacção com os restantes membros da comunidade .
Toda a interacção social é um processo de visibilidade que tem a ver com a teatralização da vida coletiva , onde cada um dos actores é simultaneamente espectador . Os ritos sociais são as regras da teatralidade da vida coletiva , e são tanto mais indiscutíveis quanto mais cada um considerar o seu papel como parte de uma peça ditada por uma instância transcendente , exterior , por conseguinte , ao espaço e a história da colectividade , a partir de um ponto de fuga a partir do qual se perspectivam todos os lugares da cena . Essa instância é o fundamento indiscutível da própria representação .
A identidade e o lugar atribuído a cada um são , assim , relativamente estáveis e ditados desde esse ponto . Tanto o desenrolar da cena como os lugares atribuídos aos actores estão fixados de antemão por uma ordem transcendente , revelada numa temporalidade a-história , sem uma origem nem termo determinados no decurso da temporalidade mortal dos homens , e que se sobrepõe assim ao desenrolar factual da história humana . Por isso se designa como temporalidade mítica , por apresentar o cenário de uma outra representação , a dos deuses , o das gesta fundadoras do cosmos , onde a sociedade dos homens ocupa o centro , ao mesmo tempo que este é o seu reflexo especular e a sua razão de ser .


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A Busca do Divino no Homem Ocidental ! Parte 4

Nas sociedades tradicionais , encontramos sempre a presença de uma narrativa das origens , que tanto atribui um lugar e uma explicação à experiência histórica e contingente como dita a sua forma de organização . São estes mitos fundadores que asseguram às mudanças coerência e inteligibilidade .
Nas sociedades ocidentais , as narrativas das origens que desde sempre serviram de quadro à estruturação de percepção do cosmos e da vida coletiva são os mitos judaico-cristãos da criação .
As versões bíblicas da criação do mundo , assim como as versões eclécticas dos mitos indo-europeus que nos chegam através dos mitólogos gregos , nomeadamente Homero , Hesíodo , e os autores pré-socráticos , formam a herança mitológica que estrutura o nosso imaginário .
A partir do século XVII , o contacto dos povos europes com outras culturas , nomeadamente asiáticas , africana e ameríndias , reforçou o processo de desencantamento característico da nossa modernidade . A Antrolopologia e a Etnologia têm posto em relevo que para além da natureza multifacetada do mosaico das culturas e da relativa convergência da lógica que preside às suas representações míticas , todas as culturas estabelecem um princípio demiúrgico ou divino a partir do qual um quadro estável preside ao desenrolar histórico da experiência contingente da vida humana com as suas múltiplas dimensões e os seus diversos domínios .
A consciência da diversidade dos mitos das origens , das teogonias , é em grande parte responsável pela relativização moderna do fundamento religioso da experiência .
O desencantamento é o processo através do qual a razão humana procura indagar os mistérios do mundo da experiência , tanto individual como coletiva , e aspira a um questionamento autónomo em relação às razões que o quadro mítico lhe oferece , instituindo-se , assim a razão humana em sujeito de saber e de fazer independente do Númen da Palavra mágica originária .
E este processo de desencantamento que fundamenta a secularização observada como atitude nas mais diversas formas de sociedade . Traduz-se , nomeadamente , na emergência de uma nova modalidade de racionalidade , a razão iluminista , enquanto princípio imanente do conhecimento , da acção e da linguagem . A constratar com a lógica religiosa , a lógica da secularização moderna fundamentada na indagação autónoma da razão humana - , esvazia os ritos sociais da sua referência transcendente de legitimação e da consequente estabilidade das normas , para em seu lugar instaurar a experimentação , a observação e o cálculo como modalidade legitimadoras do saber , da acção e da linguagem . A própria necessidade de legitimar é fonte de instabilidade .
A razão humana está , por isso , reservada doravante já não apenas a escuta e a interpretação de uma Palavra transcendente , do Verbo bíblico ao Logos Grego , como processo fundador da legitimidade , mas o recorte de um lugar particular a partir do qual se possa instaurar como sujeito autónomo . É a identidade deste sujeito autónomo que se torna problemática , instável , processo de realização nunca acabado definitivamente na modernidade .
E neste quadro moderno que se assiste à promoção de categoria de sujeito , autonomizado em relação a uma identidade fixa e institucionalmente marcada de maneira definitiva e indiscutível .
Mas no próprio processo da sua produção , o sujeito esvazia-se de qualquer conteúdo substantivo e concreto , relegando-o para um destino movediço e flutuante , nómada , o de um duplo sem modelo fixo . Nasce assim o problema da Identidade . Quem sou eu , agora que já não tenho um " deus " que me diga quem devo ser ?

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A Busca do Divino no Homem Ocidental ! Parte 5

O habitante de um espaço vazio !
Para o homem religioso , o espaço não é homogéneo : há um espaço sagrado e há outros espaços não sagrados , sem estrutura nem consistência . Esta não-homogeneidade espacial traduz-se por uma oposição entre o espaço sagrado-o único que é real , o que existe realmente-e tudo o resto , a extensão informe que o envolve .
Quando o sagrado se manifesta por uma qualquer hierofania , não só há ruptura na homogeneidade do espaço , como revelação de uma realidade absoluta que se opõe à não realidade da imensa extensão envolvente . A manifestação do sagrado funda ontologicamente o mundo . Esta descoberta do espaço sagrado tem , pois , um valor existencial para o homem religioso , porque nada pode começar , nada se pode fazer , sem uma orientação prévia - e toda a orientação implica a aquisição de um ponto fixo e central - o axis mundi . Para viver no mundo é preciso fundá-lo - e nenhum mundo pode nascer no caos da homogeneidade e da relatividade do espaço profano .
Esta experiência religiosa da não-homogeneidade do espaço constitui uma experiência primordial , homologável a uma fundação do mundo . E a ruptura operada no espaço que permite a constituição do mundo , porque é ela que descobre o " ponto fixo " , o eixo central de toda a orientação futura .
Ao habitar , pois , um território , o homem está a consagrá-lo e a repetir a cosmogonia original . O " centro " equivale à criação do mundo , e aí onde o sagrado se manifesta surge uma abertura , uma porta comunicante entre as três " zonas cósmicas " : o céu , a terra e o " submundo " dos infernos . O homem primitivo vive , pois , aí onde há uma " abertura " para o sagrado .
A ruptura mais significativa nas sociedades primitivas situa-se ao nível da fronteira entre o espaço da comunidade ( o cosmos ) , por um lado , e o mundo informe e indefinido dos outros ( o caos ) .
Instalar-se num território implica sempre uma decisão vital , quer para o indivíduo , quer para a comunidade . O homem assume com a reiteração da Cosmogonia a criação do " mundo " que escolheu habitar , e a responsabilidade de o manter e de o renovar : a habitação é santificada porque constitui uma imago mundi e o mundo é uma criação divina . Habitar uma moradia é uma decisão religiosa .
A concepção estética renascentista , em ruptura para com as concepções místicas ( é de referir , a este propósito , a Civitale Dei de Santo Agostinho ) , é distintiva de uma pluralidade de espaços funcionais . A concepção funcional integrou-se no paradigma dominante da organização do espaço habitado moderno , ao mesmo tempo abstracto ( geométrico ) e empírico ( funcional ) .
A revolução Industrial respeitou esta herança moderna do funcionalismo , redefinido a partir da visão eufórica da Luzes dos ideais de progresso de uma razão ilumista . Radicalizou o funcionalismo , aliás , rompendo com a polifuncionalidade que impedia a especialização racional dos espaços - o que viria a dar lugar aos projectos de desconcentração e segmentação do tecido social .
Esta forma funcional e progressista de urbanismo insere-se no quadro da explosão urbana que acompanha o desabrochar da industrialização com o consequente êxodo rural . O crescimento demográfico urbano acelerou a necessidade de planificação racional das novas cidades . A população urbana da Europa passou , entre 1850 e 1970 , de cerca de 20 milhões de habitantes para mais de 250 milhões . Era uma população recentemente emigrada do campo , habituada por isso a uma concepção global e integrada da vida coletiva , contando com os laços que prendem o indivíduo ao grupo , em que todos se conheciam em função de uma história comum e o controle social era exercido à ordem à conservação da produção de uma cultura própria , em que a segurança social perante os reveses da natureza era , por conseguinte , assegurada em virtude de formas de solidariedade concreta e direta .
Os recém-chegados às novas cidades e aos novos subúrbios das antigas urbes , confrontados agora com espaços onde a história coletiva se havia processado sem eles , perdem os pontos de referência que até então tinham garantido o reconhecimento recíproco e assegurado as condições indispensáveis ao desenvolvimento de formas concretas de solidariedade . Ficam assim votados à irrupção de comportamentos anómicos de resposta das disfunções sociais e são atirados para espaços marginais em relação aos centros de decisão e de normalidade . A anomia , conceito cunhado pelo sociólogo Durkheim , refere-se precisamente ao desaparecimento das redes de sociabilidade tradicional e à sua substituição , pelo anonimato , pela alienação , pela marginalização e por uma solidão demasiado insuportável que , como uma orquestra ensurdecedora , conduziram a inúmeros e desesperados atos de suicídio .
O ideal funcionalista atingiu o seu máximo entre as duas grandes guerras , como o arquiteto Le Corbusier apresentado ao Congresso de Urbanismo de Atenas uma proposta dominada pela ideia de zoning - " a cada função e a cada indivíduo o seu justo lugar " . O resultado foi amplamente negativo : monotonia , degradação , fealdade , gigantismo , distância cada vez maiores entre locais de habitação , de trabalho e de serviços , insuficiência dos indispensáveis meios de transporte , solidão e aborrecimento sobretudo nas pessoas idosas , insegurança dos espaços intersticiais cada vez mais voltados à circulação de uma população anónima , criminalização , esvaziamento e terceirização dos centros urbanos .



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A Busca do Divino no Homem Ocidental ! Parte 6

Uma sociabilidade comprometida e sem raízes .
Mais do que qualquer outro invento , o relógio mecânico - cuja invenção data do século XIV - , é o resultado de uma estreita e feculda convergência de conhecimento científico , em particular da astronomia e da mecânica , com o engenho técnico . E esta convergência é já uma das características fundamentais da modernidade , visto indicar a autonomia de uma indagação racional em relação a um saber transcendente e mítico . Daí a natureza escandalosa deste invento e as proibições de que os seus autores começaram a ser alvo por parte da Igreja , como todo o imaginário efabulador que as rodeavam .
Até ao século XIV , havia na Europa duas maneiras de contagem de tempo : o sistema canónico e o sistema dito temporário . O sistema canónico consistia na regulação das horas pelo sino que chamava para os ofícios religiosos , sete vezes por dia , por altura das orações regulares de Matinas ( a meio da noite ) , de Primas ( cerca das atuais 6 horas da manhã ) , das Laudes ( ao nascer do Sol ) , de terças ( pelas 9 horas ) , das Sextas ( pelas 12 horas ) , das Nonas ( pelas atuais 15 horas ) , das Vésperas ( ao pôr do Sol ) e das Completas ( ao deitar ) .
O sistema temporário , por seu lado , dividia as 24 horas do dia em duas metades isócronas , correspondendo o ponto de partida da divisão ao nascer do sol . A distância entre as horas do sistema temporário variava , assim , de acordo com as estações do ano e com a latitude em que nos encontrássemos . Em cada manhã , a tarefa de dividir o dia e de regular o pêndulo comum revestia-se , por conseguinte , de uma grande importância para o ritmo da vida de toda a comunidade , pois dessa função dependia o ritmo dos trabalhos e de todas as práticas coletivas .
A experiência coletiva tradicional é , aliás , pontuada por diversos ciclos : a alternância dia/noite , a secessão das semanas e das estações do ano , etc . Esta periodicidade sem fim , o devir cíclico dos ritmos da vida são associados com a Lua , que controla as águas , a chuva , a vegetação , a fertilidade ... Os ritmos lunares são a medida do tempo e os primeiros calendários são lunares . Da mesma forma , o percurso anual do Sol marca o início de um novo ano e , portanto , a altura de recriar a fundação original do mundo imitando a Cosmogonia fundadora .
A invenção do relógio mecânico e a redução cronométrica da duração do tempo a uma sucessão estereotipada de batimentos uniformes , a uma pura sucessão rítmica de momentos homogéneos , estava destinada a desempenhar um papel fundamental no devir das nossas sociedades ocidentais . Há , inclusivamente , quem lhe atribua a responsabilidade pela viragem na nossa modernidade .
A duração torna-se , assim , graças a este novo dispositivo cronométrico , pura potencialidade , aberta em permanência a toda a espécie de projetos , na medida em que esvazia a temporalidade de toda e qualquer duração concreta de sociabilidade . Não sendo já o tempo de ninguém , o tempo cronométrico e o ritmo que imprime à vida coletiva tornam-se o tempo e o ritmo de toda gente .
Nas sociedades tradicionais , o tempo é vivido como pleno , uno e indiviso . Esta plenitude da experiência do tempo traduz-se na referência do presente aos tempos originários fundadores ,
associados à própria origem cósmica do universo . Situado fora da temporalidade efémera da vida , marcada pela experiência limite da morte ( esta muitas vezes encarada como uma transição e não verdadeiramente um fim ) , o tempo mítico originário assegura , como vimos , a coerência e a inteligibilidade do mundo humano .
A constratar com a concepção una , plena e indivisa da temporalidade que encontramos nas sociedades tradicionais , assistimos nas sociedades modernas a um processo de divisão do tempo , análogo ao que se fez com o espaço . A divisão moderna do tempo apresenta , nomeadamente , as seguintes características : autonomização positiva do presente em relação à memória do passado e aos projetos do futuro , estereotipização dos ritos sociais , estratégia amnésica .
A autonomização positiva do presente equivale à prossecução de uma espécie de processo interminável de libertação do sujeito em relação à memória do passado , encarado como coação às virtualidades de autonomia do sujeito na fruição plena de cada um dos momentos da experiência .
O homem moderno dá prioridade à plena fruição das oportunidades que se lhe abrem atualmente e faz depender dessa fruição a plenitude da sua autinomia e a sua realização pessoal , valores centrais e indiscutíveis da visão moderna do mundo .
Ao contrário do mundo tradicional , que procura o restabelicimento de uma ordem ancestral e transcendente , o homem moderno intervém no presente no sentido de cortar as amarras com tudo o que o impeça de valer por si e fazer eclodir as oportunidades que se lhe oferecem . A racionalidade funcional torna-se , assim , o princípio da ação e da linguagem modernas e estende-se aos mais diversos domínios da experiência , tanto do mundo exterior como do mundo interior . São , assim , relegados para o domínio individual o prosseguimento das funções totalizantes da experiência . Já não contam tanto as solidariedades fundamentadas pela partilha de um território e de um tempo comuns , mas a partilha de projetos comuns autónomos e privados . O encontro e o convívio até podem ser alargados indefinidamente , mas este alargamento faz-se de uma escolha individual de modo a serem privilegiadas a evasão e a ruptura em relação às estratégias que ditam o modo de funcionamento dos processos coletivos .
Numa frase : o homem passa a relacionar-se individualmente com outros indivíduos por afinidades eletivas , formando redes de sociabilidade privadas entre quem partilha de hobbies , interesses e preferências comuns .

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A Busca do Divino no Homem Ocidental ! Parte 7

A religiosidade do homem não-religioso e as novas formas de " religare " a Deus .
Será o homem moderno realmente não-religioso ?
O homem religioso assume um modo de existência específica no mundo , e apesar da diversidade formas histórico-religiosas , este modo específico é sempre reconhecível . Em qualquer contexto histórico , o homo religiosus crê sempre que existe uma realidade absoluta , o sagrado , que transcende este mundo mas que se manifesta neste mundo , e , por este fato , o santifica e o torna real . Crê , além disso , que a vida tem uma origem sagrada e que a existência humana atualiza todas as suas potencialidades na medida em que é religiosa , i.e . , na medida em que participa da realidade .
O homem moderno a-religioso assume uma nova situação existencial : reconhece-se unicamente sujeito agente da história , e recusa todo o apelo à transcendência . Dito por outras palavras , não aceita nenhum modelo de humanidade fora da condição humana , tal qual ela se deixa decifrar nas diversas situações históricas . O Homem faz-se a si próprio , e não consegue fazer-se completamente senão na medida em que se dessacraliza e dessacraliza o mundo . O sagrado é o obstáculo por excelência diante da sua liberdade . O homem só se tornará ele próprio no momento em que tiver matado o seu último Deus .
No entanto , o homem moderno descende do homo religiosus , e queira-o ou não , é também um resultado das situações assumidas pelos antepassados . Assim como a Natureza é o produto de uma secularização progressiva do Cosmos obra de Deus , assim o homem profano é o resultado de uma dessacralização da existência humana . Mas isto quer dizer que o homem a-religioso se constitui por oposição ao seu predecessor , esforçando-se por se " esvaziar " de toda a religiosidade e de toda a significação trans-humana . Reconhece-se a si próprio na medida em que se liberta e se purifica das " superstições " dos seus antepassados .
Por outras palavras , o homem profano , queira-o ou não , conserva ainda os vestígios do comportamento do homem religioso , mas esvaziado das significações religiosas . Faça o que fizer , é um herdeiro . Não pode abolir definitivamente o seu passado , porque ele próprio é o produto desse passado .
Para dispor de um mundo para si , dessacralizou o mundo em que os seus antepassados viviam mas para chegar aí , foi obrigado a tomar o inverso de um comportamento que o precedia , e este comportamento sente-o ele sempre , sob uma forma ou outra , prestes a reatualizar-se no mais profundo do seu ser .
A maioria dos homens modernos ainda se comporta religiosamente , se bem que não esteja consciente desse fato . Não se trata somente da massa das " superstições " ou dos " tabus " do homem moderno , que têm todos uma estrutura e uma origem mágico-religiosas .
O homem moderno que se pretende não-religioso dipõe ainda de toda uma mitologia camuflada e de numerosos ritualismos degradados ( festejos de ano novo , inauguração de uma casa , se bem que laicizados , têm a estrutura de um ritual de renovação ; festas e alegrias que acompanham um casamento ou o nascimento de uma criança , a obtenção de um novo emprego ou de uma subida na escala social , etc . )
Os mitos do homem moderno estão camuflados nos espetáculos que ele prefere , nos livros que ele lê . Até a leitura comporta uma função mitológica , ao permitir a " saída do tempo " comparável à efetuada pelos mitos , projetando-o fora do seu tempo pessoal e integrando-o noutros ritmos , fazendo-o viver uma outra " história " .
A grande maioria dos " homens sem religião " não está , em rigor , liberta dos comportamentos religiosos , das teologias e das mitologias . Por exemplo , o nudismo ou os movimentos a favor da liberdade sexual absoluta , são ideologias onde é possível decifrar os vestígios da " nostalgia do paraíso " , o desejo de reintegrar o estado edénico de antes da queda onde o pecado não existia e não havia ruptura entre as beatitudes da carne e a consciência .
Persistem ainda diversas encenações iniciáticas em numerosas ações e gestos do homem não-religioso dos nossos dias . Mesmo técnicas especificamente modernas , como a psicanálise , mantêm ainda o padrão iniciático . O paciente é convidado a descer muito profundamente em si mesmo , a fazer reviver o seu passado , a afrontar de novo os seus traumatismos e - , do ponto de vista formal , esta operação perigosa assemelha-se às descidas iniciáticas aos " infernos " , entre os espectros , e aos combates com os " monstros " . Assim como o iniciado devia " morrer " e " resuscitar " para poder aceder a uma existência plenamente responsável e aberta aos valores espirituais - a análise dos nossos dias deve afrontar o seu próprio " inconsciente " , assediado de espectros e de monstros , para encontrar nisso a saúde e a integridade psíquicas , e por consequência , o mundo de valores culturais .

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A Busca do Divino no Homem Ocidental ! Parte 8

A iniciação está tão estreitamente ligada ao modo de ser da existência humana que um número considerável de gestos e de ações do homem moderno ainda repetem os quadros iniciáticos . A " luta pela vida " , as " provas " e as " dificuldades " que entravam uma vocação ou uma carreira repetem de algum modo as práticas iniciáticas : é em consequência do " sofrimento " que um jovem se experimenta a si próprio , conhece as suas possibilidades , toma consciência da sua força e acaba por tornar-se ele próprio espiritualmente adulto e criador .
O homem profano é o descendente desse homo religiosus e não pode anular os comportamentos dos seus antepassados ; além disso , uma grande parte da sua existência é alienada por pulsões que lhe chegam do mais profundo do seu ser , desta zona que se chamou o inconsciente .
Como Carl Gustav Jung concluiu , os conteúdos e as estruturas do inconsciente apresentam similitudes surpreendentes com as imagens e as figuras mitológicas . Os conteúdos e as estruturas do inconsciente são o resultado das situações existenciais imemoriais , sobretudo das situações críticas , e é por essa razão que o inconsciente apresenta uma aura religiosa . Toda a crise existencial põe de novo em questão ao mesmo tempo a realidade do mundo e a presença do homem no mundo : isto quer dizer que a crise existencial é , em suma , religiosa , visto que , aos níveis arcaicos de culturas , o ser confunde-se com o sagrado .
A religião é a solução exemplar de toda a crise existencial , porque é a experiência do sagrado que funda o mundo . Solução exemplar , não somente porque é indefinidamente repetível , mas também porque é considerada de origem transcendental e , por consequência , valorizada como uma revelação recebida de um outro mundo , trans-mundo . A solução religiosa não somente resolve a crise , mas ao mesmo tempo torna a existência " aberta " a valores que já não são contingentes nem particulares , permitindo assim ao homem ultrapassar as situações pessoais e , no fim de contas , o acesso ao mundo do espírito .
Até o homem mais profundamente a-religioso partilha ainda , no mais profundo do seu ser , de um comportamento religiosamente orientado . Mas as " mitologias " privadas do homem moderno-os seus sonhos , os seus devaneios , os seus fantasmas , etc . - não conseguem alçar-se ao regime ontológico dos mitos , justamente porque não são vividos pelo homem total e , por consequência , não transformam uma situação particular em situação exemplar . Do mesmo modo como as angústias do homem moderno , as suas experiências oníricas ou imaginárias , bem que " religiosas " do ponto de vista formal , não se integram , como entre o homem religioso , numa concepção do mundo e não fundam um comportamento .
A atividade inconsciente do homem moderno não cessa de lhe apresentar inúmeros símbolos , e cada um tem certa mensagem a transmitir , uma certa missão a desempenhar , tendo em vista assegurar o equilíbrio da psique ou restabelecê-lo . O símbolo não somente torna o mundo " aberto " , mas ajuda também o homem religioso a acender ao universal . Porque é graças aos símbolos que o homem sai da sua situação particular e se " abre " para o geral e para o universal . Os símbolos despertam a experiência individual e transmundam-na em ato espiritual , em compreensão metafísica do mundo . Compreendendo o símbolo , o homem das sociedades pré-modernas consegue viver o universal .
O homem a-religioso das sociedades modernas é ainda alimentado e ajudado pela atividade do seu inconsciente , sem que por isso aceda a uma experiência e a uma visão do mundo propriamente religioso . O inconsciente oferece-lhe soluções para as dificuldades da sua própria existência , e neste sentido desempenha o papel da religião , porque , antes de se tornar uma existência criadora de valores , a religião assegura-lhe a integridade . De um certo ponto de vista , quase poderia dizer-se que , entre aqueles modernos que se proclamam não-religiosos , a religião e a mitologia estão " ocultas " nas trevas do seu inconsciente - o que quer dizer também que as possibilidades de reintegrar uma experiência religiosa da vida jazem , em tais seres , muito profundamente neles próprios .
Por isso , e em resposta à pergunta " Será o homem moderno realmente não-religioso ? " , este texto avança com uma hipótese de resposta : " não ! " . De uma concepção sagrada da experiência a um racionalismo exacerbado , com todas as consequências que daí advieram , encontramo-nos agora num ponto de viragem , num momento crítico da existência humana . E isto , porque o sentimento religioso é uma realidade universal , intemporal e comum a todos os homens sem excepção - por muito " desconectados " que estejam dessa sua dimensão interior .

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A Busca do Divino no Homem Ocidental ! Parte 9

Ao " cortar " a ligação com o sagrado , o homem alimentava a ilusão de que a razão lhe explicaria tudo e lhe conferiria sentido à experiência . O momento atual é o da desilusão face às respostas que o racionalismo prometia fornecer . Desencantadas com esse racionalismo , cada vez mais pessoas procuram formas de se " religarem " ao divino , ao sagrado , como numa tentativa de recuperarem o " tempo perdido " por séculos de uso da mente analítica . Porque , como vimos , o substrato do sentimento religioso se mantém oculto no interior do homem .
O que nos conduz à questão seguinte : a necessidade de " religião " é algo de intrinsecamente humano e tal como o rio que contorna todos os obstáculos para chegar ao mar , assim essa necessidade do homem derrubará todas as formas concretas de manifestação de religiosidade para chegar ao contato com o divino . Porque as formas são cada vez mais , em meio de tudo isso , a parte acessória da religião e , por isso , não-essencial . O essencial mantém-se de forma una , indivisa , perene e imutável ; as formas mudam , sofrem atualizações ao longo do tempo e são indissociáveis dos contextos históricos-culturais em que se produzem .
A tendência é para o homem estar cada vez mais liberto das formas de manifestação e objetivação do sagrado no mundo e mais atento ao conteúdo do sentimento religioso no interior do próprio Homem . " Deus " ou a Verdade estão cada vez mais no interior do Homem , à espera de serem reconhecidos , admitidos , relembrados , retomados pela consciência que esqueceu e foi buscar " fora " algo que está necessariamente " dentro " .
Nas palavras magistrais de Jiddu Krishnamurti , " A verdade é uma terra sem caminho . Os homens dela não se podem aproximar por qualquer organização , por qualquer credo , por qualquer dogma , sacerdote ou ritual , nem por qualquer conhecimento filosófico ou técnica psicológica . O Homem tem de encontrar a verdade através do espelho das relações , através do percebimento do conteúdo da sua própria psique , pela observação , e não por qualquer dissecação intelectual e analítica ! " ( J . Krishnamurti , 1929 )
Compreende-se , neste contexto , que se estejam por toda a Europa recuperando as filosofias antigas , nomeadamente as orientais , e também desenvolvendo neo-filosofias orientalistas , inspiradas nessas filosofias arcaicas ( e até fazendo um trabalho de bricolage , tipicamente moderno , com elementos retirados das várias tradições místicas ) - porque são filosofias introspectivas e de auto-conhecimento ; mas também desenvolvendo técnicas , recuperando mitologias explicações do mundo e linguagens simbólicas que visam permitir ao homem moderno reencontrar " deus " , o " sentido " e a " verdade " , que são os três aspectos indissociáveis que o homem busca no sagrado , numa tentativa de recuperar a fé e um equilíbrio psíquico e emocional que o racionalismo não permitiu atingir - dado , pela sua própria natureza , não dar espaço à inclusão da dimensão " irracional " do homem .
Neste processo de " busca desenfreada do tempo perdido " , o homem tenta recuperar tradições negligenciadas pelo racionalismo ocidental no decurso da história : é o caso da recuperação do budismo , do taísmo , do yoga , das técnicas de meditação , dos rituais da magia e da religião pagãs ( o chamado neopaganismo , ou wicca ) ; da ( re ) descoberta da astrologia como linguagem simultaneamente simbólica , transcendente e psicanalítica ; do crescente recurso às denominadas " medicinas alternativas " e de naturopatia ; mas também da integração de uma panóplia de conceitos , confusamente misturados , recolhidos das diversas religiões ancestrais . Cada vez mais pessoas , hoje em dia , falam de karma , reencarnação , energias cósmicas , avatares , zen , ashram , mandalas ...
O que alguns chamam de movimento " New Age " , ou da Nova Era , é a redescoberta que o homem está a fazer do sagrado , não já no exterior , mas no interior de si próprio . E a descoberta de um " deus imanente " , interior , e não já de um " deus transcendente " cujos vestígios há que buscar no mundo .
Esta descoberta de que o homem " leva deus dentro " altera radicalmente a relação do homem com a natureza , com os outros homens e consigo próprio . O Homem aproxima-se de " deus " na medida em que se afasta dos seus padrões de comportamento equívocos , baseados no medo , no instinto de sobrevivência , e em tudo o que é inconsciente - tudo o que em si é obscuro e não tem " luz " . O homem aproxima-se de " deus " à medida a que atualiza os seus potenciais criativos , produtivos , relacionais , de dádiva , de compaixão , de perdão e de cura . Atributos outrora exclusivos de deus , e agora os reptos do homem moderno . É ao homem que cabe " ser " deus , ou deixar " deus " atuar por seu intermédio .

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A Busca do Divino no Homem Ocidental ! Parte 10

E nessa ( re ) descoberta tipicamente moderna , e mormente por estar enquadrada por uma enorme crise de referências espirtuais e de valores transcendentes , há espaço para todas as confusões e para todas as iluminações ; há espaço para visões apocalíticas , gurus cheios de glamour , seitas e religiões que se fundam de um dia para o outro - tal como diria alguém que o autor conhece , reformulando uma célebre máxima de Karl Marx e adaptando-a à confusão espiritual dos tempos que correm , " a Nova Era é o ópio do povo " .
Mas também há o espaço para a auto-descoberta , para a observação consciente do numen e o comprometimento com a própria evolução , numa jornada pessoal de tomada de consciência e de ascenção na matéria . As condições estão criadas : cabe a cada um de nós , individualmente , tomar as rédeas do próprio destino e fazer por atualizar no mundo o deus que traz dentro .
A busca do Divinosujeito se tornem atuais . Assim como Sócrates conduzia os jovens , pela maiêutica , a conhecer o que estava contido em suas almas , de modo igual , Tomás acredita que aprendizagem não é transmissão de conhecimento de mestre a discípulo , mas condução a tal conhecimento .

Conclusão :
Estes Ensinamentos , estão alem de uma simples proposta pedagógica no sentido de colocar o indivíduo a participar simplesmente através de uma interação junto a sociedade organizada . Eles visam colocar o indivíduo em contato com sua natureza superior divina onde está localizado a Consciência . Se tais ensinamentos forem adquiridos , o indivíduo passa de objeto a sujeito e nesta posição ou com esta visão , consegue ser guia para a sociedade comum , cujo tal feito ainda não foi ancançado . Aqui ele estará apto a praticar a mais elevada ética e dedicar-se aos seus semelhantes . E o ensino e o aprendizado ideal para que a natureza humana possa alcançar aquilo a qual está destinada ou seja , a verdadeira liberdade . Quando os indivíduos são livres , a sociedade é livre .

Fundamentos Históricos e Filosóficos da Educação .

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terça-feira, 23 de junho de 2009

Fundamentos Históricos e Filosóficos da Educação !

Desde seu surgimento até os dias atuais , a problemática pedagógica acompanha intimanente a gênese Social , Política e Cultural da Sociedade organizada . Isso porque a educação é encarregada de promover a formação do homem , como sujeito capaz de atuar e interagir no âmbito social . A educação vem , pois , como uma ferramenta indispensável para amparar e sustentar a base da sociedade organizada . Ao mesmo tempo , ela deve conduzir o indivíduo a plena realização de suas potencialidades .
Não ignorando outros períodos e tantos pensadores , o período medieval , e o cristianismo como Modelo pedagógico e sua influência na História humana , será aqui o foco de nossa análise . Em todos os períodos da história em relação a pedagogia , podemos perceber diversas contribuições e tentativas de fornecer uma determinada direção para a aquisição de se conhecer e ensinar algo .
Os Ensinamentos nos moldes Cristão , pensamos influenciar um enorme percentual das mentes ocidentais , visto que nossa formação religiosa é quase em sua totalidade a formação cristã . Sendo assim , o pensamento em torno das idéias e dos ensinamentos do Cristo nos parecem mais proveitosas .
A importância colocada em relação ao próximo , indica ao mesmo tempo uma preocupação com o indivíduo e ao mesmo tempo , uma preocupação com a sociedade , visto que a mesmaé formada por ambos , " eu " e o próximo . Desta forma podemos encontrar aqui neste sistema uma situação que inclui tanto o individual como o coletivo e por este motivo considera-la neste aspecto como um modelo perfeito . Neste período do nosso contexto histórico , destacam-se dois pensadores de grande importância .
Santo Agostinho representando a patrística , e Santo Tomas de Aquino representando a escolástica . Vamos conhecer algumas de suas idéias com relação aos ensinamentos no qual defendiam como sendo fundamental ao ser humano .

Santo Agostinho
Na sua obra confissões , Agostinho praticamente esboça o caminho da formação cristã , pois o caminho ascendente a Deus é o mesmo da autoformação . Com efeito , a alma deve tornar-se apta para a iluminação . Segundo Agostinho , os conhecimentos e os saberes adquiridos são frutos do despertar pelo mestre , que se identifica com a figura do Cristo . Sobre sua doutrina cristã , Agostinho insiste em uma formação enciclopédica baseada nos diversos conhecimentos e saberes que devem iluminar e fazer consciente a viagem do cristão a Deus ... Agostinho inspira-se na idéia de que o discípulo não aprende o que o mestre enuncia na sua fala ( pois este é incapaz de ensinar ) . Ele apenas conduz e guia o discípulo para recordar o que já sabe , ou seja , o que o mestre interior lhe conferiu ...

Santo Tomás de Aquino
Ensinar nada mais é do que provocar conhecimento de algo em outrem . Ora , sujeito do conhecimento é o intelecto . Mas os sinais sensíveis mediante os quais o homem parece possa ser ensinado não atigem o intelecto , mas permanecem na potência sensitiva . Logo , um homem não pode ser ensinado por outro homem .
Se um homem ensina a outro é necessário que se torne de conhecedor em potencial , a conhecedor em ato . Logo é preciso que seu conhecimento seja levado de potência ao ato . O que porem , passa do potencial ao ato necessariamente muda ( AQUINATIS , 1953 p. 223-224 )
Portanto , podemos compreender , a partir dos trechos supracitados , que , na visão Tomista , cabe ao mestre cultivar o intelecto do discípulo , para que este realize a passagem de potencia ao ato .
Ou seja , conduzir o processo de formação para que as faculdades de potência de conhecer do sujeito se tornem atuais . Assim como Sócrates conduzia os jovens , pela maiêutica , a conhecer o que estava contido em suas almas , de modo igual , Tomás acredita que aprendizagem não é transmissão de conhecimento de mestre a discípulo , mas condução a tal conhecimento .

CONCLUSÃO
Estes ensinamentos , estão alem de uma simples proposta pedagógica no sentido de colocar o indivíduo a participar simplesmente através de uma interação junto a sociedade organizada . Eles visam colocar o indivíduo em contato com sua natureza superior divina onde está localizado a Consciência . Se tais ensinamentos forem adquiridos , o indivíduo passa de objeto a sujeito e nesta posição ou com esta visão , consegue ser guia para a sociedade comum , cujo tal feito ainda não foi alcançado . Aqui ele estará apto a praticar a mais elevada ética e dedicar-se aos seus semelhantes . É o ensino e o aprendizado ideal para que a natureza humana possa alcançar aquilo a qual está destinada ou seja , a verdadeira liberdade . Quando os indivíduos são livres , a sociedade é livre .


TEXTO : Marcos Modesto

Aluno de Filosofia do Claretiano :

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segunda-feira, 22 de junho de 2009

Vem , Jesus Nazareno !

Há longos meses , meu querido Mestre , que venho seguindo a teu lado , pelas montanhas da Galiléia , pelas campinas da Samaria , cidades da Judéia , pelas ruas de Jerusalém .
No fim destas páginas , que vivi e sofri contigo e por ti , só me resta pedir-te perdão das inúmeras falhas e imperfeições de que elas vêm repletas , e rogar-te que , com a tua divina sabedoria , supras a minha humana ignorância .
Jesus Nazareno !... Estamos com saudades de ti ...
Já não podemos viver sem ti ...
A babel da sociedade moderna suspira pela paz das tuas palavras ...
As nossas saudades soluçam pungentes de dor e desventura ...
Estamos cansados dos nossos pecados ... enjoados dos nossos vícios ... nauseados das brilhantes futilidades do mundo ...
Volta a este mundo , ó Jesus Nazareno !... Volta , aureolado daquele encanto primaveril , daquele frescor juvenil , daquele fulgor estelar que , há vinte séculos , arrebataram o coração varonil de um Simão Pedro , enlevaram a alma contemplativa de um João Evangelista , o coração de Maria de Mágdala ...
Jesus Nazareno !... Torna a ser para os filhos do século XX o que foste para os cristãos das catacumbas , para os mártires do coliseu , para os místicos do ermo ...
Jesus Nazareno !... A história destes vinte séculos é a continuação da tua peregrinação terrestre . Os homens maltratam-te ... Esbofeteiam-te ... Flagelam-te em praça pública ... Coroam-te de espinhos ... Arrastam-te de tribunal a tribunal , da astúcia de Anás à insolência de Caifás , da covardia política à escandalosa luxúria de Herodes ...
Crucificam-te ... Sepultam-te na indiferença e no esquecimento ...
Os Iscariotes atraiçoam-te ...
Os Simão Pedro negam-te ...
Os fariseus insultam-te ...
Os discípulos abandonam-te ...
Tu sabes , meu querido Rabi , quão difícil é descobrir através dos nevoeiros do presente século o FULGOR DOS TEUS OLHOS ...
Amesquinhada pela humana fraqueza , desmaiou a pulcritude do teu perfil ...
A simplicidade do teu Evangelho está reduzida a uma teia de exterioridades , a um labirinto de formalismos , em que o espírito se desnorteia e a alma agoniza asfixiada ...
Os homens procuram modelar à sua imagem e semelhança a divina epopéia do teu Evangelho ...
Os homens não querem subir às alturas --- querem que tu desças às baixadas deles .
O teu Evangelho foi substituído pelas teologias . A tua bandeira flutua sobre o quartel-general do anticristo .
A imprensa , a literatura , o cinema , a televisão te reduziram a uma caricatura ...
Volta , pois , Jesus Nazareno ! Volta a este mundo que só tu podes salvar ...
Encontrarás maior número de fariseus do que naquele tempo ; não passarás três anos de vida pública sem seres crucificado ; porque os teus lábios proferem verdades dolorosas , verdades contrárias aos ídolos do coração humano e aos fetiches proteiformes da sociedade ; a suprema simplicidade do teu caráter nunca se aviltou a ponto de pactuar com a política penumbrista das atitudes covardes e das posições indefinidas --- e os homens não te perdoarão jamais essa sinceridade ...
Por isso , meu Jesus , serás crucificado pelos fariseus do nosso século .
Os judeus crucificaram uma vez o teu corpo --- mas os cristãos crucificam o teu espírito há quase vinte séculos .
Nós , porém , os teus discípulos , estaremos como guarda de honra ao pé da tua cruz e nos cobriremos com o manto sanguinolento dos teus opróbrios ...
O que importa , Senhor , é que venhas quanto antes para infundir vida nova a este organismo languescente e doente da sociedade moderna ...
É necessário que venhas reintegrar o teu Evangelho na suprema beleza daquela simplicidade com que brotou dos teus lábios divinos ...
Vem , Jesus Nazareno !...

Texto : Huberto Rohden
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