terça-feira, 30 de junho de 2009

A Busca do Divino no Homem Ocidental ! Parte 6

Uma sociabilidade comprometida e sem raízes .
Mais do que qualquer outro invento , o relógio mecânico - cuja invenção data do século XIV - , é o resultado de uma estreita e feculda convergência de conhecimento científico , em particular da astronomia e da mecânica , com o engenho técnico . E esta convergência é já uma das características fundamentais da modernidade , visto indicar a autonomia de uma indagação racional em relação a um saber transcendente e mítico . Daí a natureza escandalosa deste invento e as proibições de que os seus autores começaram a ser alvo por parte da Igreja , como todo o imaginário efabulador que as rodeavam .
Até ao século XIV , havia na Europa duas maneiras de contagem de tempo : o sistema canónico e o sistema dito temporário . O sistema canónico consistia na regulação das horas pelo sino que chamava para os ofícios religiosos , sete vezes por dia , por altura das orações regulares de Matinas ( a meio da noite ) , de Primas ( cerca das atuais 6 horas da manhã ) , das Laudes ( ao nascer do Sol ) , de terças ( pelas 9 horas ) , das Sextas ( pelas 12 horas ) , das Nonas ( pelas atuais 15 horas ) , das Vésperas ( ao pôr do Sol ) e das Completas ( ao deitar ) .
O sistema temporário , por seu lado , dividia as 24 horas do dia em duas metades isócronas , correspondendo o ponto de partida da divisão ao nascer do sol . A distância entre as horas do sistema temporário variava , assim , de acordo com as estações do ano e com a latitude em que nos encontrássemos . Em cada manhã , a tarefa de dividir o dia e de regular o pêndulo comum revestia-se , por conseguinte , de uma grande importância para o ritmo da vida de toda a comunidade , pois dessa função dependia o ritmo dos trabalhos e de todas as práticas coletivas .
A experiência coletiva tradicional é , aliás , pontuada por diversos ciclos : a alternância dia/noite , a secessão das semanas e das estações do ano , etc . Esta periodicidade sem fim , o devir cíclico dos ritmos da vida são associados com a Lua , que controla as águas , a chuva , a vegetação , a fertilidade ... Os ritmos lunares são a medida do tempo e os primeiros calendários são lunares . Da mesma forma , o percurso anual do Sol marca o início de um novo ano e , portanto , a altura de recriar a fundação original do mundo imitando a Cosmogonia fundadora .
A invenção do relógio mecânico e a redução cronométrica da duração do tempo a uma sucessão estereotipada de batimentos uniformes , a uma pura sucessão rítmica de momentos homogéneos , estava destinada a desempenhar um papel fundamental no devir das nossas sociedades ocidentais . Há , inclusivamente , quem lhe atribua a responsabilidade pela viragem na nossa modernidade .
A duração torna-se , assim , graças a este novo dispositivo cronométrico , pura potencialidade , aberta em permanência a toda a espécie de projetos , na medida em que esvazia a temporalidade de toda e qualquer duração concreta de sociabilidade . Não sendo já o tempo de ninguém , o tempo cronométrico e o ritmo que imprime à vida coletiva tornam-se o tempo e o ritmo de toda gente .
Nas sociedades tradicionais , o tempo é vivido como pleno , uno e indiviso . Esta plenitude da experiência do tempo traduz-se na referência do presente aos tempos originários fundadores ,
associados à própria origem cósmica do universo . Situado fora da temporalidade efémera da vida , marcada pela experiência limite da morte ( esta muitas vezes encarada como uma transição e não verdadeiramente um fim ) , o tempo mítico originário assegura , como vimos , a coerência e a inteligibilidade do mundo humano .
A constratar com a concepção una , plena e indivisa da temporalidade que encontramos nas sociedades tradicionais , assistimos nas sociedades modernas a um processo de divisão do tempo , análogo ao que se fez com o espaço . A divisão moderna do tempo apresenta , nomeadamente , as seguintes características : autonomização positiva do presente em relação à memória do passado e aos projetos do futuro , estereotipização dos ritos sociais , estratégia amnésica .
A autonomização positiva do presente equivale à prossecução de uma espécie de processo interminável de libertação do sujeito em relação à memória do passado , encarado como coação às virtualidades de autonomia do sujeito na fruição plena de cada um dos momentos da experiência .
O homem moderno dá prioridade à plena fruição das oportunidades que se lhe abrem atualmente e faz depender dessa fruição a plenitude da sua autinomia e a sua realização pessoal , valores centrais e indiscutíveis da visão moderna do mundo .
Ao contrário do mundo tradicional , que procura o restabelicimento de uma ordem ancestral e transcendente , o homem moderno intervém no presente no sentido de cortar as amarras com tudo o que o impeça de valer por si e fazer eclodir as oportunidades que se lhe oferecem . A racionalidade funcional torna-se , assim , o princípio da ação e da linguagem modernas e estende-se aos mais diversos domínios da experiência , tanto do mundo exterior como do mundo interior . São , assim , relegados para o domínio individual o prosseguimento das funções totalizantes da experiência . Já não contam tanto as solidariedades fundamentadas pela partilha de um território e de um tempo comuns , mas a partilha de projetos comuns autónomos e privados . O encontro e o convívio até podem ser alargados indefinidamente , mas este alargamento faz-se de uma escolha individual de modo a serem privilegiadas a evasão e a ruptura em relação às estratégias que ditam o modo de funcionamento dos processos coletivos .
Numa frase : o homem passa a relacionar-se individualmente com outros indivíduos por afinidades eletivas , formando redes de sociabilidade privadas entre quem partilha de hobbies , interesses e preferências comuns .

Deixe seu Comentário

Nenhum comentário:

Postar um comentário