sábado, 12 de março de 2011

" Odisseia " Parte II

Consciência Protoplásmatica

Ano seguinte foi umperíodo de grande transição para mim . Estava aprofundando meu compromisso com o estudo e prática do Zen . Meditava diariamente ( três horas ) e uma vez por mês fazia uma sessão de dia inteiro , sozinho ou com outros . Casei-me com minha melhor amiga , Amy , e abandonei o curso de pós-graduação , interrompendo meu doutorado e tirando um mestrado ( principalmente porque agora queria dedicar todo o meu tempo na elucidação do espectro e na prática do Zen ) . Foi difícil para muitos dos meus amigos , família e colegas entender por que eu não me mantinha no ambiente universitário - se não em ciências , pelo menos em filosofia ou psicologia . Com a publicação de Spectrum apareceram ofertas para dar aulas , mas recusei . Não é que desgostasse de dar aulas ou que sentisse , como William Irwin Thompson , que a academia estivesse completamente desvirtuada . Sabia que se ensinasse este material o dia todo , ainda assim chegaria em casa e trabalharia nele a noite inteira , com consequência desequilibrantes . Além disso , estava profundamente envolvido pelo conceito Zen de honrar as atividades mais humildes , mesmo , ou especialmente , o trabalho manual " inferior " . Porque queria valorizar esta postura de equilíbrio , procurei deliberadamente e assumi empregos de trabalho manual em tempo parcial : como atendente de posto de gasolina , lavador de pratos , vendedor de armazém . Daí em diante , minha esposa passou a apresentar-me como " o mundialmente famoso autor e lavador de pratos . "
Nem preciso dizer que toda essa situação foi um treinamento extraordinário . Foi um treinamento primeiro , e principalmente , em humildade . Esqueça a formação acadêmica , esqueça os livros e artigos , esqueça os títulos , esqueça realmente tudo e lave pratos por vários anos . Também foi um treinamento em manter os pés no chão , em viver o mundo de uma maneira imediata , concreta , tangível , não através de palavras , conceitos , livros ou cursos . E o mais perturbador para mim , foi um completo treinamento na vida daqueles que somente podem ter esses empregos simples como meio de subsistência , sobrevivendo com salários ínfimos . Vivi e trabalhei com dúzias de almas que trabalhavam duro e eram abertas e decentes , mas cujos destinos as recompensavam apenas com futuros sombrios e com corpos que envelheciam prematuramente devido à tensão física . Não há outra maneira de se dizer isso sem parecer piegas , assim direi apenas que saí dessa situação com um sentimento compartilhado de humanidade , de íntima fraternidade , algo que nenhum livro e nenhuma universidade poderiam ter-me proporcionado .
Este arranjo ( trabalho-estudo-meditação ) proporcionou-me o equilíbrio ( corpo-mente-espírito ) , a flexibilidade e o tempo de que precisava para desenvolver minhas pesquisas .
A primeira coisa que fiz nesta " atmosfera livre " foi escrever uma versão popular para Spectrum chamada No Boundary ( 1979 ) . Em seguida , dediquei-me a uma elaboração mais precisa do modelo do espectro . Sendo mais específico , em The Spectrum of Consciousness concentrei-me quase que somente nas estruturas básicas da consciência ; assim , voltei-me para o desenvolvimento e a dinâmica básica dessas estruturas ( enquanto , ao mesmo tempo , refinava e expandia meu entendimento das mesmas ) .
Por essa época , houve uma virtual explosão de várias " cartografias da consciência " : a pesquisa de Grof com psicodélicos vinha sendo cada vez mais aceita como um trabalho legítimo e não como um produto de " alucinações com ácido " ; o trabalho de Maslow sobre a hierarquia das necessidades estava sendo rapidamente entendido ; Huston Smith ( 1976 ) apresentou um estudo definitivo demonstrando de uma vez por todas que o cerne das grandes religiões do mundo era uma hierarquia de consciência ; e também havia Green e Green , Tiller , Goleman , Tart , Houston e Masters , Battista , Welwood , Metzner e meu próprio trabalho sobre o espectro - o ponto mais notável era que todas essas cartografias se mostravam essencialmente semelhantes . Mas o que faltava em todas elas era uma tentativa sustentável de estudar e descrever a dinânica e o desenvolvimento dessas várias estruturas ou níveis de consciência . Até onde foram , as cartografias eram boas ; simplesmente faltava a elas sensibilidade desenvolvimentista . Esta era exatamente a crítica de Hegel a Kant : as estruturas de consciência não são simplesmente dadas no início ; elas somente podem ser concebidas como algo que se desenvolveu . Foi para este desenvolvimento que direcionei minha atenção e os resultados de meus estudos preliminares seriam finalmente publicados como The Atman Project ( Wilber , 1980 ) .
Entretanto , dois importantes eventos interromperam temporariamente a redação de Atmam . Um foi uma revista ; o outro foi uma viagem pela antropologia .
Comecemos pela revista : um indivíduo chamado Jack Crittenden , após ler Spectrum , vinha mantendo correspondência constante comigo . Queria fundar uma revista dedicada àqueles assuntos tratados em Spectrum e que seria , de certo modo , uma combinação entre Main Current , Studies in Comparative Religion e Journal of Transpersonal Psychology . Queria que eu editasse , ou , pelo menos , co-editasse a revista , mas declinei do convite ( principalmente porque já estava assoberbado com minhas próprias pesquisas ) . Prometi apoiá-lo moral e intelectualmente ; também concordei em seriar Atman em quatro partes na sua revista . Jack e eu começamos a trabalhar na revista ( que ele denominou Re Vision ) e nos tornamos amigos constantes . Finalmente , convenceu-me a ser co-editor com ele e , então , habilmente , " abandonou " seu posto de co-editor para se tornar " diretor/editor " , deixando-me , num belo movimento de xadrez , como único editor . Mas por essa época , estava contente em fazê-lo . O entusiasmo de Jack havia-me convertido e Re Vision transformar-se-ia numa revista extraordinária .
Se Re Vision estava fluindo suavemente , minhas tentativas de conceituar desenvolvimento psicológico não estavam . Para começar , tornou-se óbvio que teria que estudar a psicologia do desenvolvimento do bebê e da criança , o que , em si mesmo , não apresentava sérios problemas . Afinal , os trabalhos de acadêmicos como Werner , Piaget e Kohlberg - de certa forma , todos estruturalistas como eu - haviam criado a noção muito clara e precisa de " desenvolvimento como desdobramento estrutural " e mapeado seu rumo desde a infância até a adolescência . Mas , desde o início , estava interessado não só naquilo que esses psicólogos da personalidade tinham a dizer , como também no que as tradições místicas tinham a dizer , e mais , em como encaixar coerentemente essas idéias . E isto se mostrou , desde o princípio , um problema extraordinário .
O problema girava em torno do estado de indissociabilidade do sujeito objeto .
Obviamente , a tradição mística afirma há longo tempo que o estado definitivo é de unidade sujeito-objeto ( ou não-dualidade ) . Este é o estado da totalidade final , a Suprema Identidade de Brahman-Atman . Mas virtualmente todas as escolas da psicologia ocidental - os Kleinianos , os Freudianos , os Junguianos , Piaget , Fairbairn , Mahler e Kaplan , Loevinger - afirmavam que o bebê , o recém-nascido , existe inicialmente em um estado em que sujeito e objeto , o self e o outro , dentro e fora , são um . Klein chamava este estado de identificação projetiva ; Piaget , de consciência protoplásmatica ; de acordo com a psicanálise , ego-libido e objeto-libido não diferenciados . Problema : qual a relação deste estado com o estado supremo , já que ambos são unidades sujeito-objeto ?
A maioria dos autores com conhecimento de tradições místicas considerava o estado neonatal como evidência de uma unio mystica ou samadhi primordial , quando a alma existe em unidade com o mundo . Os Junguianos , por exemplo , sustentavam que nos primeiros meses da infância o ego está perfeitamente identificado ou imerso no Self .
Norman O . Brown afirmava que este estado inicial de fusão sujeito-objeto é o estado perfeito de não-dualidade , que é recapturado em despertares místicos ; pensamentos essencilmante similares foram expressos por Allan Watts , Joseph Campbell , Louise Kaplan , Prince e Savage , Arthur Koestler e outros .
Seguindo esta pista , que certamente parecia fazer sentido para mim , comecei a reconceituar o rumo completo do desenvolvimento , baseando-me nos dados da corrente principal da psicologia do desenvolvimento , porém considerando o contexto das tradições transpessoais . O caminho parecia ser direto : O recém-nascido começa em um estado de " consciência cósmica infantil " , um estado de unidade ou totalidade primária , mas está inconsciente desta totalidade ; é uma identificação inconsciente com o Self ( a visão Junguiniana ) . Entretanto , a fim de perceber esta totalidade , a alma primeiramente deve renunciar a esta unidade inconsciente e criar um self isolado e um mundo de separação e dualidade ; só então ela poderá retornar à totalidade de um modo consciente , mantendo ligação com o ego , mas alinhando-o e religando-o ao Self . Assim , o caminho completo de desenvolvimento seria o de um estado inicial de união transpessoal inconsciente ( " paradisíaco " ) , para um self pessoal consciente ( dividido e alienado ) , até uma união final consciente transpessoal ( conscientemente total e extática ) .
A evidência desta visão parecia irresistível ; seguindo-a comecei a reunir os domínios pessoal e transpessoal num esquema desenvolvimentista e dinâmico , e não só num esquema estrutural como havia feito em Spectrum . O desenvolvimento foi o delineado no parágrafo anterior . Cheguei à dinâmica do seguinte modo .
A principal escola de psicologia a tratar de problemas psicodinâmicos foi a psicanálise ; assim procurei nela as sugestões iniciais . Nesta escola , há um imenso corpo de teoria e pesquisa ( de Freud a Loewald ) sugerindo que a principal ( mas não a única ) dinâmica de desenvolvimento é tentar recuperar o prazer narcisista que existia no seio materno ( na fase oral pré-ambivalente ) e que foi perdido no desenvolvimento subsequente .
Freud não só afirma que o sentimento egóico humano uma vez abraçou o mundo inteiro [ i.e . , durante o estado neonatal de fusão sujeito-objeto ] , como também que Eros impele o ego a recuperar aquele sentimento : " O desenvolvimento do ego consiste num afastamento do narcisismo primitivo e resulta numa vigorosa tentativa de recuperá-lo . " No narcisismo primitivo , o self é uno com um mundo de amor e prazer ; daí ser o objetivo final do ego humano restaurar o que Freud chama de " narcisismo ilimitado " e colocar-se , uma vez mais , em unidade de amor e prazer com o mundo inteiro . [ Brown , 1959 ] .
Junte-se esta visão à visão transpessoal e ter-se-á o seguinte : se esta condição original de fusão neonatal é realmente o estado inicial de totalidade ou de identidade com o Self , segue-se que o objetivo do desenvolvimento é recuperar a união com o Self . Se usarmos o termo hindu para o Self supremo , então a dinâmica do desenvolvimento pode ser conceituada como um " projeto Atman " . As implicações de tudo isso foram apresentadas nos primeiros rascunhos de The Atman Project , que começaram a ser publicados em Re Vision , como combinado .
Mas quanto mais pensava sobre este modelo de desenvolvimento , mais parecia que algo estava profundamente errado . Li e reli insistentemente meus escritos , tentando descobrir o que me estava incomodando . Sentia-me desconfortável , pois parecia que havia apresentado o caso tão cuidadosamente que não conseguia quebrar minha própria argumentação ; e ainda assim , algo estava definitivamente errado .
Quanto mais ponderava sobre a situação , mais era levado ao estado inicial de fusão neonatal , aquela " consciência cósmica infantil " . Seria realmente um estado de identificação inconsciente com o Self , uma identificação subsequentemente perdida e depois recuperada ? Compreendia que a maioria das autoridades transpessoais dizia sim ; todavia , aquela proposição era , na realidade , o ponto crucial do problema - não os dados ( há realmente um tipo de estado de fusão neonatal ) , mas sua interpretação ( ele realmente tem algo a ver com o Self ? ) . Pois se realmente havia um espectro da consciência - uma Grande Cadeia do Ser , como colocação por Lovejoy - então seria razoável assumir que o desenvolvimento seguia a própria Grande Cadeia , movendo-se , como não poderia de ser , do seu degrau inferior para o degrau supremo . Mas aí estava o problema : a visão geral transpessoal ( Norman O . Brown , Watts , Jung e outros ) postulava um tipo de retorno em U , não nas extremidades da Grande Cadeia , mas exatamente no meio . Por razões que explicarei a seguir , aquele retorno em U começou a deixar-me profundamente intrigado . Posteriormente , chegaria à conclusão de que foi precisamente a falha em questionar aquele retorno em U que desviou meus esforços iniciais .
Este foi um período muito difícil para mim . Sentia dores físicas ao esforçar-me para endireitar as coisas . Intelectualmente , era como acelerar um motor de corrida em ponto morto . Se não me tivesse ancorado no trabalho manual e na segurança do zazen , tenho certeza de que teria soltado um pino por aí . O problema era complexo porque , num primeiro momento , todas as evidências estavam do lado da visão transpessoal geral . Por outro lado , se assumimos que de , algum modo , há paralelos filogenéticos/ontogenéticos , então nem mesmo a mitologia antropológica servia de ajuda . A mitologia não nos fala de uma Idade de Ouro , um Jardim do Éden , um Paraíso no qual todas as coisas eram unas em êxtase e felicidade e de onde homens e mulheres caíram ? E esta queda não foi causada pelo conhecimento , separação e alienação egóica ? E isto não se encaixa perfeitamente com o desenvolvimento infantil : unidade inicial , depois separação e , por fim , retorno à unidade ( com iluminação ) ?
Texto : Ken Wilber 
Deixe o seu Comentario .       
       

Nenhum comentário:

Postar um comentário