domingo, 2 de novembro de 2014

" A DOMA DO TOURO "

Os Dez Quadros de Iluminação Através do Zen

1 - Introdução 

Uma das mais significativas e pictóricas interpretações da Mente Búdica e das diferentes etapas que precedem seu brusco despertar , é encontrada numa série de gravuras executadas por um pintor - calígrafo chinês , há vários séculos .
É verdade que a ideia original não lhe pertence . Parece haver existido precursores , que aplicaram o mesmo tema com finalidade idêntica . Porém , nesse caso , aliás como sempre , a retomada de um ponto focal de ensinamento , de uma concepção artística genial , de um " achado " valioso não significa necessariamente plágio ou cópia servil . Trata-se de um enfoque diferente de algo tão importante e tão representativo do sentir e do pensar humano , que são inesgotáveis e diversificadíssimas suas formas de expressão .
As variáveis de autor para autor ainda mais lhe realçam o valor , ajuntando mais vida ao tema retomado .
Já Racine , referindo-se ao aproveitamento temático das tragédias sofoclianas feito pelos clássicos renascentistas , dizia que os gregos já haviam teatralizado toda a imensa gama de paixões humanas . A seus pósteros , Racine inclusive , só resta revestir o mesmo assunto de uma nova roupagem mais de acordo com a atualidade do momento histórico em que o novo autor vive e age .
Da criatividade do reformulador depende ; é claro , fazer de um assunto antigo , talvez desgastado por usos menos brilhantes , uma obra-prima que , sem de leve empanar o brilho das originais , torna ainda mais viva e eloquente a ideia-fonte .
As tragédias de Racine nada ficam a dever às escritas pelos gregos , cujos personagens e enredos ainda inspiram autores modernos mais ou menos hábeis na difícil arte de transpor , para o teatro do final do segundo milênio , os temas tão bem urdidos pelos clássicos .
Assim também tem acontecido com os famosos quadros do Touro Selvagem . A eterna atualidade do tema , sua profunda significação humana , somente captável através de estímulos intelectivos , capazes de revolucionar conceitos e conhecimentos arraigados há milênios , fascinam o homem tecnológico e prosseguirão atraindo a imaginação criativa de autores excelsos ou medíocres .
Sentimos o mesmo impulso , experimentado por tantos contemporâneos , de também apresentar uma versão do universal texto . O fundo permanecerá inalterado , a forma modernar-se-á , ocidentalizando-se nos pobres versos de sabor tupiniquim , ilustrados por imagens diferentes das primitivas , pois as desconhecemos ou delas não nos recordamos suficientemente , para reproduzi-las com fidelidade .
Há em nós uma vaga reminiscência perdida num passado longínquo . Vimos , não sabemos onde , nem como , nem por que , uma série de antigas gravuras japonesas com textos aparentemente curtíssimos , pintados sobre cetim amarelecido pelo tempo .
Vimo-las mesmo , ou trata-se apenas de uma armadilha da memória ? Talvez seja assim ; uma falsa recordação de algo que objetiva , intuitiva ou mediunicamente tenhamos contemplado um curto instante , mas que se gravou indelevelmente em nossa memória física ou não .
Dissemos de forma indelével porque , no primeiro momento em que nos deparamos com alusões , fragmentos poéticos ou reproduções modernas dos Quadros , instantaneamente os identificamos como um " haver " nosso , reencontrado , ressurgido , não o objeto de um primeiro contato .
O fascínio , experimentado nos momentos da redescoberta , ainda perdura . Quanto mais nos é dado estabelecer interligações novas e mais esclarecedoras , maior é nossa afinidade com este símbolo tangível do transcendente eclodir da iluminação humana .
Estabelecida a comunicação dos motivos determinantes da confecção do presente estudo , só nos cabe iniciar os comentários didáticos sobre o que nos dado entender por " Doma do Touro Selvagem " .


2 - Histórico e Significado 


Há entre os autores que nos servem de fonte de consulta , uma enorme discrepância sobre a origem e a data do nascimento do mais significativo intérprete do Dez Quadros ; o pintor-calígrafo que acrescentou as duas pinturas finais à anterior série de oito habitualmente apresentada por seus inúmeros antecessores .
A série provém da China e já visava ao mesmo propósito retomado por todas as interpretações posteriores , inclusive as mais recentes que nada mais acrescentaram aos Dez Quadros .
O que se observa apenas é um toque mais ou menos pessoal em relação ao desenho , ou uma adaptação também mais ou menos livre dos poemetos originais no sentido de traduzi-los para idiomas diferentes , mantendo o quanto possível o conteúdo semântico oriental . Assim o exige evidentemente o contexto , pois ele apresenta um cunho filosófico-religioso , apesar de tal adjetivação ser repelida pela fonte zen-budista donde os versos provêm .
Mas , em termos ocidentais , parece-nos ser o modo mais apropriado para dar uma ideia geral do sentido profundo implícito no conjunto texto-gravuras .
A série decimal é atribuída ao monge Kakuan Shien , que viveu na China no século XII , fazendo parte , portanto , da plêiade de pintores zen da dinastia Sung ( 959-1279 ) . Pertencendo ou sendo descendente espiritual dos paisagistas Sung , o certo é que os quadros obedecem ao mesmo despojamento característico das pinturas Zen .
O equilíbrio da forma com o preconcebido espaço vazio , que parece fazer parte integrante da pintura e jamais um fundo deixado ainda para ser pintado , leva o artista a preencher somente uma pequena porção da tela , transmitindo , não obstante , intensa vida a toda a área pintada ou não .
É o " pintar através do não pintar " , o " tanger do alaúde sem cordas " tão comunicativa , que prescinde de quaisquer comentários intelectuais , ou excesso de detalhes perturbadores do impacto estético e da mensagem Zen implícita na obra de arte .
A figura é intimamente ligada com seu espaço em branco , provocando a sensação do " Maravilhoso Vazio " , donde todo e qualquer acontecimento vital jorra espontaneamente .
trata-se de um domínio integral do pincel , a técnica do denominado estilo " zenga " . As pinceladas potentes , espontâneas , rápidas sugerem , em seus traços , uma vitalidade expressiva , isenta de tateios , hesitações ou inibições . Tais contornos exuberantes provocam , no espectador , a sensação estranha de que o desenho mantém seu movimento mesmo após o término do ato de pintar .
É uma espécie de " obra aberta " , não no sentido usual de provocar e estimular uma interpretação individualista , subjetiva mas sim um choque suficientemente forte para abalar as concepções estético-filosóficas do contemplador interessado ou inadvertido .
O oitavo quadro é nitidamente característico do estilo zanga de caracteres chineses , vigente ainda entre os adeptos do Zen .
A presença do círculo isolado é a prova cabal . A ausência de simetria , a evidente despreocupação em traçar formas geométricas e regulares produzem um círculo solitário , levemente excêntrico , numa fuga propositada à rigidez formal . Tal figura é , porém tão cheia de vida e energia , que se mostra aos olhares do espectador como é um si mesma e como deve expressar a " verdadeira talidade " , espontânea e natural , jamais ordenada , regular mensurável , geométrica .
Pintura e poema , compostos simultaneamente em estilo caligráfico de pintura , são realizados com a tradicional tinta negra da China sobre papel ou seda com o auxílio de um pincel de ponta fina montado num cabo de bambu .
O toque do pincel , leve e fluído , permite à tinta que apresenta um número imenso de qualidades e " cores " de preto , escorrer com tal regularidade sobre o material , que o movimento de mão e do braço sugere evoluções de uma dança descontraída , não um mero ato de escrita ou desenho . Jamais uma interpretação posterior poderia exprimir a totalidade do estado interior de Hakuan em seu crucial momento criativo . Tudo o que se pode fazer é tentar projetar um vislumbre do momento vivo de participação em que mundo novo surgiu da contemplação da série por ele idealizada , momento em que se tornou possível captar , no conjunto pintura-poema , o conteúdo espiritual nele habilmente subentendido .
As referências à iluminação Zen , a seus princípios brotam não do dito verbal ou da ilustração pictórica , mas do " espaço vazio " destinado a provocar um silêncio da mente , no qual não há possibilidade de " pensar sobre " algo estranho e misterioso , mas de senti-lo no mais recôndito do ser .
É experimentada a visão interior evocadora do que é sugerido , não dito em palavras , acontecido por " si próprio " . É a espontaneidade do desabrochar natural dos estados de consciência propícios ao autoconhecimento e sua posterior autoconfirmação .
É , em outras palavras , a visão do mundo em sua totalidade ( tal como é ) , sem comentários , sem verbalizações , sem filosofar ; o " sono-mana " dos japoneses .
" Assim mesmo " deve ser o resultado da silenciosa e atenta contemplação dos Dez Quadros . O apascentar do Touro deve emergir tão natural como a semente do solo fecundo , um trabalho da Natureza , uma maturação despojada de artifícios , de propósitos , sem vitória a ser arquitetada , alvo a ser atingido , mente a ser domada .
Consciência superficial e " Mente Original " são uma e inseparável coisa , pois a primeira nada mais é que " uma atividade especializada da outra " , um instrumento a ser manejado , uma alavanca para levantar o Cosmos .
A consciência superficial pode acordar para o eterno agora da iluminação tão espontaneamente como olhos abertos absorvem , por si próprios , sem necessidade de " tentar ver " , todos os detalhes que podem ser vistos num objeto qualquer , quando a luz é favorável ao ato normal para quem tem o sentido da visão em boas condições .
Cônscio de ser o próprio processo de sua auto-realização , o aspirante-aprendiz , jardineiro de seu jardim , domador de seu Touro , fator de sua iluminação não pára de podar , aparar , arrancar ervas , encaminhar suas plantas , mas o faz dentro do espírito de " ser o próprio jardim " , não um agente externo a interferir com a Natureza , a dominá-la , a torturá-la .
O Touro ( Mente Iluminada ) e o pastor ( consciência superficial ) são Um , sempre o foram e o serão . Saber isso é libertar-se da ignorância cósmica , é conhecer quem se é , é voltar à fonte original , à Morada donde nunca se saiu , é perceber a interdifusão do mundo do Vazio com o mundo da forma , é agarrar o Touro , a aquisição da Sabedoria fundamental , a verdadeira e única realização do Caminho .
A um golpe de vista superficial , podemos estabelecer uma inversão de valores ao tentar interpretar o significado real do " apascentar do " Touro selvagem " .
Pode parecer-nos mais provável que o animal bravio represente o ser humano revestido de seus corpos materiais ; ao domador , cabe , então , o papel da Mente Búdica . Assim seria , se a pintura em questão se reportasse ao estabelecimento de uma autodisciplina Yogue em que o praticante busca , por todos os meios a seu dispor , dominar sua mente para alcançar os mais excelsos graus de espiritualização . O Touro seria o Ego inferior e seu amo , a Mente Original , pura e eterna .
O enfoque dos quadros é , porém , diferente . O que o autor da série pretende ilustrar , em versos e desenhos , é o ser humano aparentemente divorciado de sua Verdade essencial , onipresente e oniatuante , mas oculta e difícil de ser percebida pelo seu estado de profunda ignorância .
O Touro simboliza tal Verdade , isto é , a Mente Original . Embora potencialmente em estado de latência em todas as criaturas humano-terrestre , a Mente Búdica não é um estado de consciência ordinário e de fácil constatação . Ao contrário , a maioria da raça vive e renasce no plano físico sem jamais ter a ocasião e o desejo de contactar essa transcendência . A minoria que atinge o estado probatório e almeja inserir-se entre os iluminados , deve enfrentar um esforço estrênuo , continuado e , às vezes , de resultados insignificantes .
Foi esse o motivo que levou os Mestres antigos a conceber o domínio do Touro como uma série de investidas gradualmente mais gratificantes , até que surja , repentino e abrupto , o estado de consciência iluminada e tudo siga seu curso , fluindo de forma tão natural como o rio que busca o Oceano , sem indagar de onde veio e para onde irá , nem qual o fim de seu peregrinar .


3 - Captação Intuitiva 

Os Dez Quadros oferecem a um observador desavisado uma aparente dicotomia de enfoques , sendo ambos , porém , essencialmente Um . A contraparte exotérica não implica um velar do significado único ; é apenas uma decorrência obrigatória da própria forma de comunicação alegórica . Ao contrário , o símbolo possibilita a captação de algo , cuja visão ainda somente é perceptível a uma pequena parcela de seres humanos .
Este novo " ver " é mais do que transcendência estética , embora com ela se interligue intimamente , conseguindo mesmo extrapolá-la , gerando assim um maior grau de intuição metafísica , finalidade subjacente em toda pintura Zen .
A série de gravuras pode ser considerada como :
1) Obra de arte portadora de um valor intrínseco envolvendo uma captação direta ( domínio da axiologia ) . Nesse caso , ela se inclui no estilo zenga da pintura Zen , na qual o interesse artístico decorre não da pintura em si , mas de seu vínculo com a poesia , a cujo valor literário se acrescenta a beleza da caligrafia ideográfica , obra-prima de um genuíno manejador de pinceis ;
2) Conteúdo universalizador , que ultrapassa a época da sua criação , projetando-se num futuro longínquo como expediente de iluminação e exploração das mais recônditas regiões da alma humana .
A poesia , veículo dos ideais e da correspondência da sensibilidade entre artista e obra , revela qualidades formais imprescindíveis à transposição pictórica , expressando assim os sentimentos mais íntimos do autor e servindo de fonte de comunicação com os interessados na contemplação dos quadros e leitura dos versos .
Tal comunicação não pode ser objeto de ensino ; seu significado deve ser sentido , vivido , experienciado pelo receptor , nele despertado uma emoção suficientemente forte para pôr em jogo , aspirações latentes , anseios que sempre jazem como arquétipos no imo do ser e se manifestam como intuição especial . Essa é evidentemente uma capacidade particular de penetração integral no sentido emprestado pelo artista a seu trabalho . É intransferível , embora haja , em todo ser humano , a potencialidade da compreensão intuitiva .
Trata-se de símbolos característicos destinados a atuar como complexo de estímulos visual-auditivos ( os versos escritos conservam a ressonância da palavra -voz ) , com vistas a uma possível captação intuitiva . O que importa não é o jogo de palavras , mas a probabilidade de suscitar um estado no qual se processe a dissolução da personalidade superficial , que oculta o fundo do Eu , oportunizando-se a experiência transcendental da Iluminação .
Tal estado de plenitude consciente , criador e organizador de uma visão cósmico-individual inteiramente inédita , deriva do papel construtivo assumido pelo silêncio provocado pelo impacto inicial , anunciador da penetração profunda no âmago da mensagem implícita no contexto poema-caligrafia-pintura . Mensagem pressentida , intangível , pois não foi expressamente concebida pelo emissor que apenas usou de sua criatividade e de sua arte como um expediente para exprimir sua própria maneira de auto confirmação em um estado de consciência inequivocadamente iluminado .
É relevante a correção estabelecida entre o espaço vazio do quadro , a aparente ausência de significado simbólico-místico dos versos que se referem apenas a uma situação existencial corriqueira ( perda , reconquista , doma de um fugidio animal selvagem ) e o silêncio . O silêncio não é a ausência de pensamento , assim como o espaço vazio não é fundo inacabado de pintura , nem os versos aí estão para expressar um fato banal , duvidosa fonte de inspiração criadora . O silêncio constitui mesmo o marco inicial do Pensamento-chave , que dele brota e a ele retorna . É a pausa que delimita , separa , mas serve também para unir , conectar , promover a captação intuitiva exatamente como alguns musicólogos registram ao tratar de pausa em termos musicais . Sem ela , a expressividade não alcançaria o ponto máximo , onde alma humana , beleza , harmonia se fundem , se equilibram num frêmito sublime , cuja marca intemporal assusta e fascina quem sabe ouvir o silêncio e dele extrair a essência da Verdade . 


4- Tipologia dos Espectadores    

Baseada na tipologia idealizada por Hyers ao procurar classificar ouvintes musicais , tentamos obter alguns dados interessantes sobre respostas comportamentais não desejáveis , mas presentes na maioria dos admiradores dos Dez Quadros .
A originalidade única dessa expressão artístico-religiosa ( religião-união com a Mente Búdica ) evita , como também o faz o Zen budismo , as seguintes manifestações :
a) a intra-subjetivação que desperta experiências sensoriais emotivas ou de ordem afetiva , provocadoras de uma possível identificação pessoal com o símbolo não com o substrato espiritual contido no mito . Essa experiência frustrada pode induzir o espectador a visões nas quais ele se torna o personagem central das cenas , caso aliás bastante comum entre aspirantes ávidos de ativa participação nos " meios " usados para atingir o objetivo principal e exclusivo ;
b) a associação - que busca ligar a experiência atual com o acervo anterior de imagens ou ideias , ensejando o desvio da identidade característica da nova impressão minimizando-se , por conseguinte , o impacto previsto para uma súbita tomada de consciência de uma inesperada e nove dimensão do ser . Fatalmente as antigas crenças , superstições , filosofias impulsarão o contemplador e leitor a encontrar pontos de intersecção , analogias , ideias e valores interativos , o que constituirá um empecilho para o fim almejado .
c) a objetividade - que leva às críticas , às análises extremadas do conteúdo superficial simbólico sem nada assimilar do significado profundo , sempre oculto e impermeável ao cartesianismo analítico exclusivo do intelecto . Tal significado transcende ao racionalismo por ser uma faculdade da alma humana , puramente intuitiva ;
d) a animização - que conduz o espectador a personificar a obra artística , atribuindo-lhe qualidades caracteristicamente humanas ; santidade , misticismo , religiosidade , sacralidade . Aí ocorre o risco de envolvimento em aspectos irrelevantes , inadequados , incompatíveis com os objetivos do artista , retirando-se mesmo a possibilidade de captação do verdadeiro sentido , que o mito encobre e apenas deixa entrever aos mais atentos . Os Quadros são um " meio " não um fim especifico em si mesmos . Sua contemplação pode complementar um processo já em vias de amadurecimento , induzindo a " este passo mais além " que faz o " insight " transmutar-se na legitima experiência da iluminação sempre auto-confirmatória . Nada há na série de triste , alegre , sagrado , solitário , benéfico , angustiante , positivo , tranquilizador ou qualquer outra qualidade das inúmeras com que é dotado o ser humano . Tal como se apresentam , a olhos capazes de perceber o lado não transparente da alegoria , os Dez Quadros são a simples expressão poético-pictórica de um estado de alma de alguém que , tendo penetrado no silêncio eloquente da verdadeira transfiguração humano-divina , desejo ver outros seres também realizar o autoconhecimento , perscrutando sua própria e única natureza íntima .
Isso é agarrar o Touro e viver a Vida sem medo , deixando-a fluir livre e tranquilamente , nela própria encontrando o princípio e o fim do ato existencial sem preocupar-se em defini-la , rotulá-la , atribuir-lhe um sentido misterioso ou decifrável .
Empregamos termos de significação graduada " perceber , ver , perscrutar " para expressar o momento de visão na natureza intima de cada um . E daí provém a grande dificuldade sentida por todos os comentaristas Zen , sábios ou de poucas luzes ; a natureza consciente dessas atividades está sempre subentendida quando a mencionamos a alguém . Faltam-lhes sempre palavras para referir-se a processos inconscientes , isto é , aos que se posicionam " à margem da consciência ou , ainda melhor , essa deles não tem a menor ideia " . O paradoxo é o seguinte : tal tipo de percepção não é , de fato , inconsciente , apesar de revelar características fora do comum , inusitadas , pois dispensa o onipresente confronto entre o sujeito ( eu ) e o objeto ( o tal-qual-ismo ) de todas as coisas . Inexistência do eu-agente psicologicamente considerado acarretará o desaparecimento do objeto confrontante . O aparente absurdo dessa afirmativa só é superado pela experiência .
E é aí que as palavras falham , pois não existe , nem em nosso nem em qualquer idioma falado , um termo justo capaz de tornar viável a explicação de como pode ocorrer um ato perceptual sem eu dualístico , já que eu - não eu e sujeito-objeto " são tão inseparáveis como os dois pólos de um imã " . Nos estudos referentes à Cosmogonia , a noção do Eu ( Ahamkara ) marca o ponto crucial onde a experiência individual as bifurca em dois setores intimamente entre si : o universo subjetivo ( eu-agente ) e o universo objetivo ( isso ) . Libertar-se da ignorância advinda dessa separatividade individualizadora é o objeto de todos os ensinamentos , práticas , interiorizações Yogues .
Entretanto , os inúmeros testemunhos dos seres que atingiram instantaneamente semelhante experiência - surgida por si mesma , sem nenhum esforço específico , sem escopo direto - provam a possibilidade da " percepção " , quando o eu pessoal discriminativo é por fim minimizado , quiça anulado . Para tanto , mister se faz que a pessoa toda , seu intelecto incluído , esteja tão impregnada da natureza íntima ( Mente Búdica ) , que se torne possível à natureza búdica ser consciente de si mesma , sem interferência cognitiva através da sabedoria emanada da intuição ( prajna ) .
" Quando o homem é instantaneamente despertado , ele retorna à sua mente original " . ( Vimalakirti )
Instantaneamente e retorno são as palavras-chave dessa afirmação . Tais termos implicam a recusa de explicações intelectuais e uma experiência intransferível , o que confirma a originalidade da experiência e obstaculiza sua realização universal . Todos os homens são aptos potencialmente para tal cometimento , raros , raríssimos em nossos dias , conseguem revelar sua verdadeira natureza , desligando-se dos liames da ignorância fundamental e continuando a viver a experiência terrena como um simples estágio precursor da libertação .
Sete são os tipos humanos apontados pelos esoteristas como candidatos prontos ou não para atingir a iluminação . Há a considerar que a classificação revela , de maneira insofismável , uma evolução progressiva , o que pressupõe a possibilidade da mudança de tipo e alcance próximo ou remoto do estado ideal característico do perscrutador de sua própria natureza íntima . Em todos os casos , o interessado deve abrir mão de seu pequeno eu como sujeito de busca de um centro .
Se assim não o fizer , será incapaz de sair do estado de rigidez vital a que o impele o próprio ego . Só aprendendo a meditar conscientemente , pode vencer tal rigidez e experimentar um novo centro do ser , sempre muito maior do que o próprio ego , maior que " ele mesmo " .
1) O Instinto - aquele em que predominam , de forma acentuada e continua , os instintos como condutores de atos , palavras e pensamentos . Os tipos pertencentes a esta categoria , em relação à harmonia de seu modo de vida com seu ser essencial , são considerados " excêntricos " , pois carecem das condições minimas para encontrar o centro dentro de si próprios , o que pressupõe o término da habitual vivência em que o ego está sempre a afirmar-se como sujeito .
Impetuosos , sensuais , violentos , egoístas , egocêntricos , possessivos , os instintos , mesmo em culturas civilizadas , estão sempre prontos a adotar comportamentos regressivos , possessivos , os quais se coadunam com suas tendências materialistas .
É óbvio que a parte instintiva continua presente em todas as pessoas iluminadas ou não . É o tributo natural à vida terrena .
Só pode ser minimizada na etapa suprema , onde o predomínio da própria razão cede lugar à sabedoria intuitiva .
2) O Emocional - apesar da sensibilidade um pouco mais desenvolvida , os emotivos ainda estão longe de superar a afirmação do ego como agente , isto é , a divisão em sujeito e objeto só passível de desaparecimento quando o homem escuta seu mundo interior e considera corretamente o mundo externo . Guiado pelas emoções - sua capacidade de reflexão é limitada - os tipos humanos aqui catalogados se enternecem com a perspectiva de autoconfirmação , mas lhes falta a estabilidade imprescindível para transmutar suas emoções primárias na quietude e serenidade propicias ao despertar búdico . O ser emocionalmente maduro autocontrola sua sensibilidade , indo buscar suas motivações na vida interior , alcançando então o domínio do corpo e do ego , a tranquilidade da mente , que promove sua verdadeira identificação com a natureza universal de todas as coisas .
3) O Intelectual - o egocentrismo aumenta-lhe a tendência a tudo intelectualizar , tornando-o inapto para a transcendência .
Se tentar ousar ultrapassar seu intelecto para atingir uma experiência além do âmbito reflexivo , sua capacidade intelectual o impedirá de fazê-lo . Prevalecerá sempre a necessidade de analisar esmiuçadamente todos os pensamentos , fatos e emoções . A auto-análise , como elemento isolado e dominante , é um empecilho , não a fonte que poderia tornar-se a aliada da intuição . A parte intelectiva dá ênfase à perfeita manifestação individualista , não ao retorno à Unidade original . Somente escapando às faculdades racionais , poderá ser despertada a consciência de uma vida mais profunda , a abertura para a percepção do Um Supremo , única fórmula capaz de unir o homem à sua origem .
4) O Intermédio - alguém que se posiciona num certo grau de harmonia , buscando o equilíbrio entre os extremos . Apesar de ainda usar excessiva lógica formal , já observa suas emoções e consegue dominá-las , não se deixando levar pelo primitivismo instintivo . Porém , sendo sua harmonia por conflito , o equilíbrio é relativo : o ego continua a imperar , defendendo com vigor suas derradeiras cidadelas , sempre considerando-se como separado do resto das coisas , apesar de já vislumbrarem-se os indícios prenunciadores de uma possível abertura para estados mais aprimorados de subjetivismo .
5) O Esclarecido - já em vias de tornar-se autoconsciente e realizar a equação primordial ; ser-conhecer . Manifesta pendores para a prática do Ynana-yoga , procurando a sabedoria pelo uso adequado de seu intelecto . É um estudioso aplicado , cônscio do objetivo a alcançar , esforçando-se para tanto . Busca estabilizar-se , avançar além da reflexão intelectiva , mas malgrado seu poder de discriminação , ainda lhe resta transmutar conhecimento em Sabedoria . É lhe difícil o mergulho total na Luz Imanente , pois não conseguiu superar o conceito de que a Iluminação é algo a ser atingido , e não inerente e inseparável de si mesmo . É o praticante que sabe : o Reino está em seu interior ; e suplica que " venha " a ele .
6) O Lúcido - a clarividência intuitiva , ainda incipiente e esporádica , lhe permite atingir a compreensão nirvânica . Sente a atração abissal da vidência da natureza íntima , mas hesita em dar o grande salto no momento em que está prestes a fazê-lo .
É ainda o discípulo avançado a quem o Mestre guia , estimula , incita a voar por seus próprios meios , a fazer , da fugaz intuição , a alavanca que o levantará à experiência definitiva . É o praticante assíduo e promissor do zazan , do sesshin , do Koan , mas que ainda não recebeu a autoconfirmação nem a troca de olhares com o Mestre , sinal de que ambos partilham de identidade da Luz Inata .
7) O Iluminado - a meditação e a auto-análise tornaram-no plenamente cônscio de sua realidade . Sabe e vive de acordo com a plenitude de seu desabrochar . Nada o identifica como cósmico nem o distingue de seus companheiros de jornada , a não ser a tranquilidade e a serena visão do mundo e de si próprio .
" Aprendeu a viver um dia de cada vez e a estar sempre consciente " . As tensões , os desgostos , os prazeres mundanos , as recaídas nos antigos deslises , a ilusão de não ter ilusões , nada mais o perturba ou distrai .
É pensamento puro a fluir no Universo , flutuando como a Nuvem Branca ao sabor do vento , sem inquietações , cuidados , temores ou mesmo desejos de saber para onde vai , qual é seu destino . A despaixão e o desapego são seus pontos fortes , mas , se o sente , não se deixa impressionar . Vive no eterno Aqui e Agora , desapegado de toda temporalidade .
É o próprio momento eterno no qual todos os tipos se integram , se conjugam , se identificam para o existir no Universo , permanecendo ainda na vivência terrena até o esgotar supremo do Karma ainda em seu derradeiro movimento vibratório .
É Luz , sabe-o e deixa-A vibrar para iluminar o mundo - assim é a experiência do iluminado Os sete tipos relacionam-se evidentemente com as ilustrações e os poemas da série dos Quadros da Conquista do Touro .
É a marcha evolutiva dentro do processo centrípeto , no qual as vibrações periféricas sentem a atração do centro e a ele tentam retornar . O que poderia ser conhecimento , é experiência : a proposição , o testemunho e a busca mostraram ser apenas a obra criativa de um artista , cujo instrumento de expressão é o próprio corpo , a própria mente , a própria alma . Sua obra-prima é a construção de sua própria realidade existencial .
Esculpiu em si mesmo o Homem : esse já pode testemunhar-se perfeito e divino .

Texto : do livro A Doma do Touro ( RAMANADI ) Continua 
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