domingo, 2 de novembro de 2014

" A DOMA DO TOURO "

Os Dez Quadros de Iluminação Através do Zen

5- O Emprego de " Meios "   

São inúmeros e variadíssimos os " meios " empregados com a finalidade de propiciar a interessados possuidores de capacidades já evidenciadas uma série de situações que lhes permitam abandonar a lógica aristotélica e integrar-se na " lógica paradoxal " , predominante no pensamento chinês e hindu . Aos que vivem em culturas em que a correção da lógica aristotélica jamais é posta em dúvida , é difícil , se não impossível , ter experiências conflitantes com o raciocínio habitual , pois as mesmas são julgadas absurdas , incompatíveis com a ciência cultural do Ocidente . A dificuldade torna-se então ainda maior , o que enfatiza a necessidade de emprego de expedientes diversificado para atingir o alvo proposto .
Irracionalidades , paradoxos , imagens , gestos , metáforas até atos de violência fazem parte dos meios utilizados para provocar a implosão revolucionária sem a qual não seria provável a reorganização do centro existencial , a mudança completa entre a anteriozação do centro existencial , a mudança completa entre a anterioridade e o momento a ser vivenciado . Nele tudo deve ser reestruturado : o postulante assume sua tarefa de construtor de sua realidade , exercitando-se em sua capacidade de modificar-se , de experimentar a própria existência , de apreender sua natureza profunda , única , intransferível , impartilhável .
O enfoque da realidade nada tem a ver com o mundo científico de pesquisa , mesmo quando admite um certo tipo de análise introspectiva . Não se trata de " falar a respeito " , " discorrer sobre " , " dissecar objetivamente " , ou fazer experiências científicas com o Eu . A pessoa humana vive a própria Vida , não conceitos por mais científicos , exatos , avaliados sejam eles .
Esse é o motivo pelo qual se buscam , se inventam , se ensejam expedientes para conhecer o Eu de dentro , não de fora , para levar o aspirante a ultrapassar o reino da intelecção e da abstração a fim de sentir , experienciar sua pessoal originalidade ou criatividade . Sem essa marca distintiva do Eu , o homem jamais poderá ver-se em sua autêntica face de " homem-verdadeiro sem posição " , " a origem de todos os Budas " , conforme ensina Rinzai Gigen ( século IX ) .
Alguns meios , apesar de sua proclamada eficacidade , ainda não são aplicáveis entre nós que mal começamos a saber que o intelecto não é a suprema realidade , mas sim um instrumento necessário para determinar , embora vagamente , onde ela está .
Entre eles o famoso " koan " que , malgrado seu enunciado intelectivo , só é compreendido quando , tirado do inconsciente , aflora na consciência .
O mestre é elemento imprescindível : ele apenas aponta para o que está dentro de cada um de nós , o resultado independe de sua habilidade magistral . Somente o inquiridor , com seu sentimento de autonomia , liberdade e autodeterminação , pode desenvolver , em si mesmo , o inconsciente treinado do homem maduro a fazê-lo operar no campo da consciência .
A vontade , no sentido essencial da palavra , somente a vontade pode encontrar a resposta que " jaz profundamente sepultada sob os alicerces de nosso ser " . É a única chave para abrir as portas da percepção , para aprender a " pensar com o ventre " , agarrar e segurar o Koan com as mãos nuas até que completa e integral identificação permita que o Koan se resolva por si mesmo , sem a interferência intelectiva . Fácil ; pois não ! Talvez um dia , quem sabe ? , tal expediente nos seja acessível . Até lá contente-mo-nos com outros meios menos implosivos , mas de mais fácil alcance em nosso caso .
Há um extenso anedotário , repetido à saciedade em todos os autores que se propõem a transmitir o significado espiritual presente em qualquer dos atos comuns da vida . Referem-se às perguntas e respostas ( mondo ) verdadeiros desafios lançados pelos mestres com o intuito de auxiliar o perguntador e encontrar a resposta espontânea ao disparate proposto a não tentar encontrá-la no plano da intelecção . O " disparato " o é aparentemente , pois é a mola mestra que anula o hábito da conceituação e rompe o véu que impede a mente finita de compreender que tem raízes no infinito .
A explosão temperamental de um mestre pode nos parecer incoerente , desconcertante , brutal mesmo . Mas funciona , se aplicada no momento exato com a pessoa certa por um genuíno guia , que conhece verdadeiramente seu ofício e pode apontar o centro em que sabe existir " a verdade que liberta " .
Aquilo que o mestre propõe e aquilo que o discípulo esforça-se para assimilar , num determinado e inesperado momento , convergem para o centro comum , e o coração de ambos é um só coração .
A sintonia e a sincronia testemunham eloquentemente , silenciosamente , perenemente que ambos estão banhados da mesma Luz embora ela continue a irradiar-se de focos individualizados . O clássico e insuperável momento em que o intercâmbio silente do sorriso e do olhar de Buda e de Mahakasyapa provou ao Cosmos a genuína percepção do Sermão da Rosa - início da mais significativa experiência entre dois seres iluminados - repetiu-se mais uma vez . Milênios passaram desde então , mas é sempre de " coração para coração " que o sublime autoconhecimento se produz . Anulado o eu objetivo de cada um , só permanece o Eu Supremo , que abarca todas as formas individuais e é fundamentalmente a Verdade Absoluta .
O " caminho de coração para coração " é revelado quando o que já se reconhecera como a modalidade da " perfeita consciência " e o que buscava tal estágio , repentinamente sabem , sentem , confirmam que , na pureza , se libertaram do dualismo do ser e do não-ser e assim realizaram a Verdade . 
Como o caminho da maturidade existencial é tornar-se tranquilo , o sentar-se em quietude perfeita ( imobilidade corporal - respiração ritmada , consciente centralização harmônica com a sístole e a diástole do Universo - Zazen ) é o método mais indicado para atingir a experiência da auto-iluminação .
Parece-nos que há uma tendência geral em inter-relacionar pequenos poemas com a prática do treinamento ao se querer passar do caminho particular ao Caminho . Assim sendo , versejemos o conhecido haiku explicativo da importância fundamental do Zazen .
Nada fazendo .
Calmamente sentado .
Vida vivendo .
O " nada fazer " não significa abstrair-se de tudo e devanear pelo mundo da fantasia , ou sonhar acordado , esquecido dos compromissos e dos misteres inerentes à própria pessoa Nada disso. 
É , ao contrário , a forma correta de interiorizar-se a fim de proporcionar a si mesmo a verdadeira percepção do mundo fenomenal .
A tensão entre sujeito e objeto deve cessar pela escuta de nosso mundo interior e correta apreciação do mundo externo , o que é obtido pela prática pacifica da meditação ( Dhyana )
associada a exercícios baseados nas tarefas da vida cotidiana . O paradoxo se resolve por si mesmo , se atentamos que " somente olhos vigilantes percebem as coisas duradouras " O exercício deve superar a antítese ego-mundo , experimentando essa oposição em grau elevado para ser eficaz no sentido de conduzir à unissonância , na qual se processa a rendição à Grande Respiração do " UM " . A Unidade básica se manifesta ( rompe através ) , o " ego " cessa de afirmar-se como entidade separada em constante conflito com o objeto - seu reflexo e oposto - para vibrar uma polaridade viva , em que transparece a origem comum do sujeito e seu adversário .
Entre os " atos " específicos aconselhados à obtenção desse especial estado de consciência - fazer parte necessária e indivisível da Vida que pulsa em todas as coisas - podemos citar : o arranjo de flores , a cerimônia do chá , o banho ( nele dissolver-se , identificando-se com o elemento água ) , a escrita , o contar histórias , a dança , a pintura , a esgrima , a luta , a arte do arco e uma infinidade de técnicas a ser adquiridas com um único e derradeiro propósito : sobrepujar a tensão entre sujeito e objeto e obter o ato perfeito .
Ato perfeito - o grau de maestria , fruto da maturidade interior - significa a união absoluta da tarefa e da técnica , não para formar especialistas bem renumerados , mas para que o homem se torne " o meio ideal para o modo específico pelo qual apraz à Grande Unidade revelar-se " . O intelecto cumpriu bem sua parte , o coração acalma-se , a vontade desativa-se , o ego não mais se encarrega do desempenho da tarefa prescrita : o Um a realiza .
Se a perfeição técnica em qualquer exercício resultar em uma atitude adequada , a " visão interior " aparece como prenúncio da possibilidade de " libertar-se da vida e da morte , elevar-se acima de ambas , para descobrir o verdadeiro ser e , afinal , ser absorvido na Vida , que está além da vida e da morte " .
Para os principiantes como nós ainda inaptos para a consecução do ato perfeito , o mais apropriado é ir assimilando , pouco a pouco , o que os verdadeiros artistas nos legaram e tentando paulatinamente ir penetrando na técnica que permita tornarmo-nos parte consciente da própria verdade , inata em todos nós e sempre prestes a revelar-se no caso de assim permitirmos .



6- O Haiku  

Penetrar no espírito de um haiku , poema de 17 sílabas com a contagem 5 sílabas , sete e novamente 5 no terceiro verso , é compreender , em parte ou integralmente , o pensamento oriental .
A economia de palavras , o ritmo cadenciado sem intenção de tornar o poema musical , um fato singelo , descrito no poema sem o acréscimo dos sentimentos experimentados pelo poeta , caracterizam o haiku ( haikai ) . É claro que tais sentimentos estão implícitos no pequeno poema , pois esse é uma demonstração simples e singela do amor votado pelos orientais à Natureza , que os leva a descobrir grandeza e graça nas coisas consideradas insignificantes e indignas de apreciação pela maioria dos ocidentais .
A maior parte dos grandes poetas japoneses , principalmente os adeptos do Zen , utilizaram o haiku para provar sua identificação com o meio natural , despertado ou avivado pela contemplação momentânea e atenta de algo que se expressa a si mesmo , no silencioso e eloquente esplendor da Vida a manifestar-se em coisas e fatos corriqueiros , mas prenhes de significação para quem saiba interpretá-los à luz de uma inter-relação profunda com a Unidade Cósmica .
Bashol ( 1644-1694 ) , o inigualável " hokku " , exemplifica de forma admirável o poema clássico , provocando , no leitor interessado , a sensação de totalidade por ele vivenciada no contacto direto com uma ocorrência banal para olhos não adextrados em ver o âmago da Vida .
Mestre Suzuki , ao reproduzir-lhe o haiku ( como aliás o fazem todos os autores Zen a nosso alcance ) tece comentários tão sábios e justos , que não nos resta senão endossar sua lúcida interpretação .
Esse corresponde à por nós emitida , quando sofremos um impacto semelhante ao do poema ; também deparamos com florinha modesta vicejando em lugar inesperado e pouco promissor . Nossa experiência , anterior a nossos estudos orientais , teve lugar num cemitério , onde , na parede , numa fresta entre duas pedras tumulares , brotara , verde e vivaz , uma alegre samambaia ( escadinha do céu ) . A visão da vida conjugada com morte revelou-nos a força total e una da Vida . O episódio reapareceu na plenitude de seu significado , quando tomamos conhecimento da reação poética de Basho e esposamos os comentários de seu continuador na transmissão dos postulados Zen .
Eis o famoso haiku e sua tradução aproximada , na qual a expressão admirativa Kana é substituída pela exclamação " Oba " .
Ambas , parece-nos , servem para expressar os mais variados sentimentos , sem nada dizer de preciso ou concreto . É pura surpresa e admiração . Nada mais .
Yoku mireba                                                                 Olhei atento ,
Nazuna hana saku                                                        vi a nazuna florir 
Kakine kana                                                                   junto à sebe , Oba !
Na Lua Cheia de agosto - os japoneses do século XX continuam a reunir-se nos terraços para admirar o plenilúnio de verão e compor haiku . Não há nenhum objetivo de produzir obras-primas de poesia estética , sentimental ou mística . É deixar jorrar a inspiração com a natural espontaneidade com que a fonte deixa fluir sua água , a rosa exala seu perfume , o sabiá canta .
Os temas são de uma variedade infinita : alguns renomados poetas usam seus haiku para ridicularizar , reduzir às devidas proporções todas as veleidades de sacralização , mesmo as relacionadas com Buddha , cuja Iluminação é modelo e exemplo das potencialidades de todos os seres humanos , não ponto focal de adoração .
Também nós tentamos compor alguns haiku . Os medíocres resultados e a dificuldade em metrificá-los nos devidos 5-7-5 sílabas não constituíram impedimentos para a tarefa que nos é gratificante e agradável . Se apresentamos aqui alguns exemplos , não há nisso outro intento senão o de poder explicar , com plena certeza , o que pretendemos comunicar . Seria demasiada presunção nossa pretender interpretar corretamente os poemas alheios , oriundos de Mestres cuja sabedoria é incontestável . Esses devem ser " sentidos " . Se não houver " impacto " na leitura , não houve intercomunicação efetiva .
Nº 1 - Ser Nuvem Branca Nº 2 - A corujinha ouve 
           espelhada na onda          pios agourentos 
           O mar cospe sal              em-be-ve-ci-da .
Quanto aos de nossa pobre inspiração , vivenciada em momentos de comunhão perceptiva com um fato natural , esses , nós os podemos analisar para tentar transmitir alguma coisa de nosso próprio sentir no momento em que os haiku ( assim chamados por obedecerem à métrica 5-7-5 ) surgiram , e os escrevemos .
Nº 1 - Aí há uma tentativa de utilizar o silêncio envolvente exigido por um poema de 17 sílabas , para mostrar que o " pouco dito " deve evocar a sensação real por ele provocada no instante da composição , É o correspondente do " espaço vazio " da pintura .
Aí a poesia " sem palavras " contém uma dose forte de sarcasmo em face do vôo místico logo cortado por um fato real , prosaico , natural em seu " tal-qual ( ismo ) " .
a) " Ser Nuvem Branca " é expressar um desejo de identificação suprema com os ensinamentos atribuídos à própria boca de Buddha . É conquistar a paz sublime pela entrega total do ser à Vida , pois a Nuvem Branca flutua ao sabor do vento , imperturbável e serena , sem jamais cogitar de seu provável próximo- remoto destino . Vê-la espalhada na onda é a complementação da ideia fundamentalmente mística , pois o " espelho " tem conotação simbólicas com as religiões orientais .
Se o espelho é a onda , a cúspide de sal sobre a imagem da Nuvem Branca nela refletida é uma decorrência lógica , inevitável .
O ter abandonado o tema quase no exato momento em que toma forma , dando-lhe um final inesperado e satírico , parece-nos não ser um despropósito chamar o poemeto de haiku .
2º) O segundo haiku já estabelece uma espécie de paralelo entre as reações opostas provocadas por uma mesma situação .
Tenta exemplificar a " relatividade " dos pontos-de-vista . Lacônica mas diretamente , os termos " agourentos e embevecida " revelam esse julgamento individual do mesmo fato : para um ocidental , condicionado por sua cultura , o pio da coruja contém maus presságios , ao passo que para o filhote é o doce chamado da mãe .
Antes de citar exemplos clássicos , estudemos mais alguns nossos que expressam nosso estado interior ao apreender estas imagens vivas do mundo quando não predomina a urgência de " ir a um lugar com hora marcada " . Momento em que podemos saborear " a vida sem um fim em vista " fluindo em sua espontânea criatividade .
3º) A rosa murcha                                  4º) O pintinho fez
      não esquece o ardor                              a minhoca bailar
      do beijo do sol .                                      a dança sem fim .
3º) Flores murchas nada apresentam de atraente ou inusitado . Mas aqui , a rosa suscita a percepção de algo além da coisa vulgar e despretensiosa em seu " tal como é " . Há um laivo de saudade , de recordação do passado capaz de fazer a flor olvidar que seu estado atual ( murcha ) é devido precisamente aos raios de sol incidindo fortemente sobre ela . É a possibilidade de ser grata à Vida , aos momentos que , sendo tempo , ocasionaram a velhice - um eco do que passou e foi amado .
4º) O fato banal , isento de comentário " sobre a vida " , que não objetiva " dizer algo " , ainda assim contém uma alusão direta : vida e morte intercaladas formando a " dança sem fim " , pois a Bailarina Cósmica vai nutrir , permitir a existência de seu aparente exterminador .
5º) Já é outono                                             6º) Apito final ;
      no meu leque fechado                                  o navio fantasma 
      a folha caí . Pioc !                                         ancorou no céu .
5º) Aqui é evidente a associação entre o efeito do som e uma cena puramente imaginada , surgida talvez da atmosfera de melancólica transformação despertada pela chegada do outono e queda das folhas . Até a folha , pintada no leque , sente a influência da estação ; essa não só tornou o leque inútil ( fechado ) como também fez a folha cair ao chão .
O ruído onomatopéico é comum nos haiku , servindo de fecho como o faz também uma exclamação admirativa . Aumenta a impressão de tristeza associada ao outono e à impermanência das coisas vivas .
6º) A disposição de espírito é ainda de tristeza desolada , de percepção de alguma coisa misteriosa e estranha , desconhecida , só possível de ser intuída pela imaginação , que pode transpor a realidade e penetrar em planos de ficção silenciosa e dramática .
O destino dos navios desaparecidos em alto mar sempre empolga os que amam e temem a força oceânica . O barco tradicionalmente apita , quando chega ao porto de destino . " Final " denota o que se vai seguir : o local de ancouradouro e a qualidade do navio .
7º) O luar pinga                                         8º) Porta aberta ,
      gotas de ouro puro                                   gente que entra , que sai :
      sobre o lodo .                                            os gonzos firmes .
7º) O tema é trivial , concreto , claro . O que estava à vista , foi olhado e visto pela emoção . A presença da Lua Cheia sempre foi fonte de comparação com chuvas de ouro caindo sobre a Terra . O diferente é a impropriedade do local escolhido se não for notada a alusão ao termo " lodo " tão presente nos ensinamentos budistas . Neles representa a vida material sempre com possibilidade de receber a luz da Lua , isto é , a iluminação espiritual .
Os símbolos estão ocultos , mas há uma implicação velada aos princípios relacionados ou consubstanciados na tradição espiritual do Oriente .
8º) Novamente , o tema exemplifica , sem ter aparentemente tal intenção , ensinamentos assimilados através de leituras de grandes pensadores . Cremos ter sido Suzuki quem citou um escritor ocidental , enfatizando que a permanência de imobilidade dos gozos , em contraste com o movimento de abrir e fechar a porta , era um exemplo típico dos ensinos budistas . Os gozos representam o Eu verdadeiro , imutável e permanente , enquanto a porta lembra a mente superficial em constante e contínuo movimento de transmutação .
É difícil não aproveitar o momento de inspiração sem daí extrair referências mais ou menos veladas das nossas próprias crenças , de tudo aquilo que é a razão de ser de nossa existência .
Mesmo buscando a viva e inevitável realidade deste mundo , o único onde nos é dado viver , o condicionamento cultural nos impede de somente experienciar a maravilhosa ausência de significado da própria Natureza . Mas que fazer então ? Rejeitar o que nos é possível sentir e expressar , aguardando sempre nos ser possível " nada dizer " através dos poemas?
9º) O papagaio                                                        10º) Na tarde cinza
      repete bem o refrão                                                  uma gaivota sonda 
      do monge : Zazen                                                     o mar sem peixe . . .
9º) Aí então a ironia se faz presente , sem mordacidade , mas objetiva e bem de acordo com os ensinamentos quando afirmam que as palavras nada significam , impossibilitando mesmo o vivenciar pleno da Verdade nua do Zen . Não basta ser monge , intelectualizar os preceitos , pregá-los sem que neles transpareçam as atitudes mais normais da vida diária , isso , no entanto , nada tem a ver com " perfeição e santidade " totais , mas concordância entre a Verdade e o viver no mundo , aspirações e atos em sintonia . O resto é papagaiar .
10º) A extrema sensação de solitária e pungente tristeza pode ser detectada em inúmeros haiku . Talvez seja o reduzido número de palavras bem escolhidas que provoque tal impressão , a mesma experimentada diante de uma pintura zenga . As pinceladas negras jogadas ao " acaso " sobre a tela onde predomina o " espaço vazio " dizem muito mais do que a riqueza minuciosa de detalhes . A solidão aí se manifesta , tal como neste célebre haiku de autor japonês .
O corvo vela
no galho de Outono ,
o entardecer . . .
Apesar da impossibilidade da tradução adaptativa manter toda a potente expressão contida nas dezessete sílabas do original japonês , ainda assim a essência - o fundo - da forma poética ainda permite sentir a desolação , na paisagem outonal , de um ramo despido de suas folhas , abrigando um corvo solitário na tradicional hora da melancolia . O verbo " vela " não é tradução literal do termo , mas nos pareceu o mais adequado para dar o toque dramático à ação exercida pelo corvo em momento tão triste " Velar " é estar presente , co-participar de um final de existir , seja de um fim de vida humana , ou do fim de um dia , do término do Outono a prenunciar a próxima chegada do frio tão inóspito e nefasto para as aves .
Um tom de tristeza também se desprende de nosso 10º haiku , que retrata a poluição de nossos mares e a aflitiva situação das derradeiras e escassas gaivotas de nosso litoral . . .


7- Haiku Famosos  

Deixemos aos Mestres o que de direito lhes pertence : seus haiku expressando a vida sem objetivo programado , seus estados de alma " vagamundos " , seus momentos de apreensão das vivas imagens terrestres , a ausência total do hábito de filosofar sobre a vida .
Apreciemos , pois , seus curtos poemas com os mesmos olhos atônitos com que as crianças olham o mundo e exprimem livremente seu espanto . Seja o leitor convidado a participar , " evocando associações que ele encontra na riqueza da própria memória " .
As traduções não literais sofreram a necessidade da permanência da métrica prescrita . O sentido é o mais aproximado possível carecendo da fidelidade inerente ao original ou a um tradutor que domine o japonês como segunda opção linguística . Tal não é nosso caso .
O ladrão se foi ,
deixando na janela ,
o ouro lunar .
Ryokan não usaria " lunar " pois evitaria a sofisticação implícita no termo " Da lua " quebraria a métrica do haiku , aumentando , porém , ainda mais o sentimento de riqueza que no poema permanece , mesmo depois de o autor ter sido roubado de todos os seus pertences .
O vento me traz 
bastantes folhas secas 
para meu fogo .
Não temos a nítida sensação de falta de dinheiro , o que aliás parece ter sido o estado normal do Ryokan , o poeta dos piolhos , das pulgas , do desconforto das chuvas geladas ? ( 1758-1831 ) .
Basho a quem se deve a evolução do haiku no sentido do " nada especial " característico do Zen , é considerado o maior poeta no gênero .
Eis alguns de seus preciosos haiku :
" kimi hi take                                                                     Sopra o fogo ,
  yoki mono miseru                                                           vem ver que coisa linda :
  Yuki moroge "                                                                 bolões de neve !

" Furu-ike ya                                                                     O velho charco :
  Kawazu tobi-komu                                                          a rã está saltando 
  Mizu no oto "                                                                   dentro dele . Plop !

O pirilampo ,                                                                     O portão de pau 
ao cair desta folha ,                                                           tem por fechadura 
já voou longe                                                                     este caracol .
Sem simbolismo , alegorias ou analogias , achando o corte de palavras ainda supérfluo mesmo nas 17 sílabas , o haiku evita os pormenores , desdenha a beleza , aponta para algo sem tentar descrevê-lo , alude ao indizível , a fim de oportunizar a captação direta das sensações sutis e chegar à " visão dentro do coração do homem " . O imediatismo , o senso do momento absoluto é que provocarão tal experiência , que , no entanto , deve ir além da experiência em seu sentido lato .
Em maus poemas ,
já não vês poesia .
Assim eles são .
Terminando com esta afirmação de Ryokan de que só capta a poesia de seus haiku quem compreende que não houve de sua parte a intencionalidade para tanto , cremos ter preparado o leitor para um enfoque adequado à redescoberta da antiga Sabedoria do Oriente de onde , hoje como sempre , procede a Luz .
A cada um seja dado o que melhor lhe convier como acendedor da própria Luz , mas é preciso que se " tente " , com constância , colhendo o fruto semeado pela Sabedoria milenar , e posto à disposição de todos os seres . A busca e o encontro da Verdade , que é Luz , em si mesmos não conflitam com nenhuma crença religiosa digna desse título .
Por mais arraigado o hábito da transferência de Luz para além do próprio coração , é possível conciliar os ensinamentos , na certeza de que o indivíduo terá uma compreensão de seu processo interior de Vida não pela análise intelectual , mas pela intuição ; que é a " pobreza de espírito " , julgada pelos ocidentais como propiciadora da correta chegada a Deus .
Texto : do livro A Doma do Touro ( Ramanadi ) Continua 
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