domingo, 2 de novembro de 2014

" A DOMA DO TOURO "

Os Dez Quadros de Iluminação Através do Zen

15- Os Dez Quadros 

" Todos os seres são dotados de uma natureza-Buda desde o mais remoto princípio " .
Sabedores de que nunca nos separamos de nossa natureza-Buda essencial quer tenhamos ou não sido iluminados , estamos prontos para explorar , perceber , compreender , assimilar o conteúdo intrínseco da série do Touro .
Num primeiro momento , ao dar-nos conta de que somente descobrimos que nunca estivemos separados da nossa natureza-Buda imaculada , entramos em êxtase . Quando o deslumbramento cessa , verificamos nada ter adquirido de extraordinário , nada de surpreendente , nada de particular . Tudo se torna , então inteiramente " natural " como sempre fora . É a identidade ou indiferenciação total .
É irrealizável tentar penetrar no sentido dos Quadros ( abordagem do Zen ) através de hipótese ou pontos de vista lógicos .
A Iluminação não se subordina a nenhuma forma de pensamento , jamais é alcançada através de interferência , cognição ou elaborações de conceitos . Só quando a mente se esvaziar das abstrações , haverá a chance do olhar livre , independente , espontâneo , natural , característico do genuíno espectador , daquele que já compreendeu , com clareza , o mundo da Iluminação .
Sem uma pré-existente fé , uma certeza inabalável de que a verdadeira natureza-Buda fundamental é uma potencialidade humana , a contemplação dos Quadros e a leitura dos poemas ilustrativos não passarão de um espetáculo não muito diferente do oferecido por qualquer ilustrador de qualquer época . É um exercício mais confirmatório que introdutório ou ilustrativo de um tema invulgar .
O impacto de singeleza dos desenhos provirá , com mais força , do espaço vazio ; as figuras são apenas a pedra-de-toque , o esboço do que está implícito no verso , não das palavras , das rimas nele contidas . É o desejo intenso de autoconhecimento que pode levar alguém a compreender a natureza da mente e o significado dos Quadros , pois ambos são indissoluvelmente unificados ; o símbolo concreto , o mito como a outra face da moeda , a que fica oculta até o levantar da peça .
O ser essencialmente perfeito - sem mácula - jorrará do imperfeito espectador . Revelada , a imperfeição simultaneamente cria a determinação de removê-la : é a prova da autêntica experiência , da Iluminação válida .
Há duas possibilidades , além da mais provável de inocuidade total consequente da visão exterior de uma série de desenhos e versos mais ou menos interessantes , não artísticos , nem belos no sentido mais geral do termo :
a) alguns apenas verão " as pegadas " do Touro ;
b) outros " agarram " verdadeiramente o Touro ;
Existe uma distância imensa entre uma percepção superficial e outra profunda . Os diferentes níveis de percepção constituem mesmo a sequência dramatizada das Dez Figuras Apascentando o Touro .


16- Quadro I : Procurando o Touro 


Onde está o seu Touro , onde , onde ?
Em que secreto lugar , ele se esconde 
Do amo aflito que , a esmo vaga ?
Longe de casa , cumpre triste saga :
Ossos moídos , coração pesado ,
Pés doloridos , aterrorizado ,
Em sonhos , vai lançando mil amarras :
Só lhe responde o canto das cigarras .

Explicação I :

A procura é realmente inútil , pois o homem persegue o Touro ( a Mente Búdica ) que jamais dele se extraviou . É uma busca de algo que nunca irá encontrar , pois é ele próprio quem volta as costas à sua Verdadeira-natureza .
As palavras traduzem o desatino , a desdita , o extremo cansaço físico e emocional do peregrino em seu jornadear ( saga ) longe de sua verdadeira morada , onde sua mente buscadora ( a que deseja saber " quem é " ) e sua natureza-Buda habitam inseparavelmente juntas - O lugar secreto é seu próprio centro , sua Vida Interior , somente aí , ele encontrará o Touro e com ele se identificará .
É uma realização solitária : o contraste entre o desespero da busca e a suave tranquilidade do canto das cigarras marca a solidão do homem que busca o encontro com o Divino e não deve esperar nenhuma ajuda externa .
1º estágio : O paçu , o homem até então preocupado com a vida material , com a autopreservação , com o culto da mentalidade objetiva , manifesta os primeiros lampejos de transcendência e inicia a busca que agora sente , de maneira confusa , deve culminar na própria experiência de plenitude da Vida , no encontro de seu " centro " .

17- Quadro 2 : Rastreando o Touro   


Olhando o solo , consultando os astros , 
Busca encontrar , nos almejados rastros ,
O Touro fugitivo . Matos densos ,
Lagos profundos , desertos imensos ,
Lá vai ele à procura do seu Touro ,
Aqui e Agora seu maior tesouro ,
Tão forte , tão potente , o bicho seu ,
Patas na Terra , focinhando o Céu .

Explicação II :

O pastor tentar achar o fugitivo não fujão nos mais diversos lugares , usando todos os meios a seu alcance .
A ciência humana ( solo-sua origem carnal ) é tão inoperante como a Astrologia representando as crenças , os dogmas , já subentendidos nas " amarras " do poema 1 , que simbolizam os ritos , magias , os meios ilusórios ineficazes para a obtenção do verdadeiro conhecimento da Vida Única .
Algumas palavras elucidam o sentido budista do poema :
a) Aqui e Agora - o tesouro - a Mente-Búdica - está sempre ao alcance de qualquer um ; independe de tempo e espaço , porque ela está presente em cada momento eterno , neste próprio envolutório carnal , na experiência diária ;
b) O último verso traduz a própria e essencial dualidade do amo do Touro : corpo preso à matéria , mente alçada ao Divino .
É no corpo humano que se obtém a Iluminação . É obra terrena .
2º estágio : Ainda se trata de uma etapa inicial ; houve um ligeiro grau de progresso , pois através dos sutra e dos ensinamentos , o homem já compreendeu que , seguindo as pegadas de seus impulsos mais elevados , talvez as informações recebidas o levem a distinguir o falso do verdadeiro .



18- Quadro III : Vislumbrando o Touro  





Seu mundo todo , pequeno atalho ,
Suave brisa balançando um galho ,
Manhã serena , radiante Sol ,
Cantar sonoro do par-rouxinol 
Que faz do frágil ramo do salgueiro , 
O início-fim do próprio cativeiro ,
O Touro ali está , ele o vislumbra :
Com tão parco poder já se deslumbra . . .

Explicação III :

O cenário todo faz apelo ao uso dos seis sentidos ( o discernimento é o sexto ) com a intenção de enfatizar não serem os mesmos diferentes da Fonte Original , sempre a manifestar-se em qualquer atividade corrente . A " plena atenção dirigida " é uma forma de percepção de sons naturais e da visão correta das coisas .
Nos versos concernentes ao par-rouxinol , existe uma alusão clara ao Bhagavad Gita . São símbolos os dois pássaros idênticos ; a mente individual é o que come os frutos da árvore ( gratificação material dos sentidos ) ; a Mente Búdica é o que apenas observa o outro , testemunhando as atividades de sua réplica . Se o comedor volver sua face para seu reflexo , liberta-se do apego pelos frutos da matéria e de todas as ansiedades daí oriundas . A rendição voluntária suscita o término da dualidade . É na vivência terrena , onde teve início a ilusão da separatividade , que o cativeiro terminará : Vazio e forma não são diferentes um do outro .
3º estágio : O que ocorre , neste estágio , é apenas a captação de um lampejo da região além da forma . Há o risco de perder a Iluminação de vista , se não houver continuidade no treinamento , ou uma avaliação exagerada . O " Insight " não oportunizou a melhora da interação característica de um ser Iluminado .

19- Quadro IV : Agarrando o Touro  


O Touro corcoveia , vai bufando 
E triste , os verdes prados vai deixando 
Com pesar tão sentido , tão profundo ,
Como chegado fosse o fim do mundo .
O laço deve estar firme e seguro ,
Pois o Touro , temendo seu futuro ,
Livrar-se tenta do feroz cabresto 
E o fará , se o amo não for lesto .

Explicação IV :

Os velhos hábitos dificilmente são abandonados : o sentimento ilusório , durante inúmeras experiências terrenas , manteve a Mente Original , em aparência , dissociada do ego pensante . Enquanto esse último persistir vinculado à vida material , seus contatos com a natureza-Búdica permanecerão esporádicos , fugazes , existindo a impressão de que ela se revelará arredia , inacessível , difícil de ser atingida . Na verdade , quem se abriga , em seus derradeiros redutos , é o ego relutante em face da mudança profunda a ser enfrentada : só o desaparecimento da tensão , pela morte do ego , permitirá o domínio pleno da Luz . A reconstrução da personalidade para dar lugar ao nascimento de um ser próximo da Perfeição é tarefa hercúlea , que demanda tempo , paciência , perseverança , fé , treino constante , disciplina irrestrita , autocontrole contínuo . Qualquer descuido , a obra fica comprometida . Daí as imagens evocadas pelos termos que compõem esta etapa muito importante , senão decisiva .
4º estágio : Sua importância decorre do fato de que até agora o pastor " não possui " , não é o amo do Touro . Mas agarrá-lo já é indicio seguro da aquisição da Sabedoria fundamental ( volta à própria Morada , a verdadeira realização do Caminho ) . Progredir um pouco mais é penetrar em uma Sabedoria mais profunda .

20- Quadro V : Amansando o Touro    

O bicho segue o amo passo a passo 
Mas pode ainda tentar romper o laço 
Que o retira das poças lamacentas 
Puxado por um fio preso nas ventas .
O pelo negro , branco vai ficando ,
O Touro , pouco a pouco , se tornando
Manso , limpo , gentil e paciente .
Ao dono fiel é , e obediente .

Explicação V : 

A tensão entre o ego-pensante ( pastor ) e a natureza Iluminada ( Touro ) impedia a unissonância harmônica entre ambos . Com o Touro já parcialmente domado , o amo vai poder aquietar as emoções conflitantes , as imagens e pensamentos desconexos , provocados por essa tensão entre sujeito e objeto , que o induzem a pensar que a vida é irreal . Os pensamentos , porém , não irreais , nem provém do mundo objetivo : enquanto a ilusão de separatividade atuar , não pode existir a compreensão de que eles brotam da nossa Verdadeira-natureza .
Focando no seu ponto exato nossa visão interior distorcida , a Iluminação dissipa a ilusão de que o Vazio ( Touro-Mente-Búdica ) e o mundo da forma são separados , ao invés de um indivisível Todo . A mútua interpenetração entre os dois é caracterizada , no símbolo , pela alteração da cor no pelo do animal e pelas qualidades aí evidenciadas totalmente opostas às observadas antes . Há a notar a alusão feita ao valor do processo respiratório : o Touro cede ao dono que o leva pelo fio preso nas narinas .
5º estágio : Apesar da série pertencer à corrente sino-japonesa do Budismo , o símbolo do Touro está ligado aos ensinamentos Shivaistas , nos quais o Touro Branco ( Neti ) é a montaria ( força feminina ativa-Shakti ) do Imutável Shiva . O negro simboliza a ignorância dual . A tomada da consciência da Luz dissolvendo a bifurcação eu-não eu , repõe a Unidade , faz a Mente mostrar-se branca .


21- Quadro VI : Cavalgando o Touro  

Do Touro faz perfeita montaria 
Para levá-lo ao fim da romaria ,
Montado no animal , ao Lar regressa ,
Tão livre como o ar , trota sem pressa ,
Nem olha para trás ; o céu fitando ,
Suaves melodias vai tocando 
Na flauta , que compassa o trote-trote 
Do Touro que prescinde de chicote 

Explicação VI : 

A luta findou ; surge agora o estado de absoluta naturalidade : as tentações não mais o fazem voltar a cabeça , também não mais o afetam as influências externas de " ganho " ou " perda " , pois todas as coisas estão como elas são . O pastor é um ser maduro estabelecido em seu verdadeiro elemento : fundiu os instintos e os sentidos , a alma e a mente , o ego e o mundo numa Unidade básica , fonte máxima de tranquilidade e aceitação da Vida tal como ela é .
A Mente-Buda , cujo símbolo é o Touro , é neste estágio inteiramente suficiente a si mesma . A profunda serenidade , experimentada pelo buscador , é traduzida pela sensação de liberdade , de alegria de viver , da ausência de pressa que marcam o regresso ao Lar , o universal anelo do homem ( o repouso da alma em Deus - a volta do filho à Morada do Pai ) . A sintonia entre o corpo e a Mente Original ressalta do abandono da coerção inicial . Existe agora um estado de consciência em que Iluminação e ego são idênticos .
6º estágio : Somente o Touro pode levar o pastor de volta à Casa , de onde aliás jamais os dois se ausentaram . Era a turbulência do ego , o antagonismo existencial que provocaram as tentações ilusórias , a dicotomia , a desarmonia . Estimulado pela fé em seu verdadeiro Eu , ele " foi para onde não conhecia , por um caminho que lhe era desconhecido " .

22- Quadro VII - Esquecendo o Touro 

O Sol ainda luz no alto céu ,
O Touro já se foi . O amo esqueceu 
O laço inútil , o cabresto duro ,
Seu sonho nada tem de mau ou puro .
Sentado tão tranquilo , tão sereno ,
Aguarda o fim do dia longo-ameno ,
A chegada da Luz na escuridão 
Harmoniosa , doce solidão !

Explicação VII :

Tudo parece estar em seu lugar certo . O pastor se sente " completo " , experenciando o gozo perfeito da Unidade que lhe é inerente . A questão básica " Quem sou eu " não mais o perturba . O Touro desapareceu quando ele o reconheceu como a Natureza-Primária , o que permite sentar sozinho ( a solidão lhe é grata ) , usufruir o Sol , o mundo fenomênico , aguardando tranquilamente o " fim do dia " . Havendo transcendido a dualidade , a morte não mais o apavora , pois agora sabe , reconhece e sente-se como parte indestrutível e inseparável da Vida Maior , eterna e luminosa . Vive o momento crítico em que a Sabedoria e a ignorância se defrontam , antes que a primeira domine , e a outra se esfume como a treva ante a vitória da Luz . Por estar além do vício e da virtude , seu sonho ( a vida transitória ) não é puro ou impuro . De posse de Grande Pureza , o homem perfeito não pratica nenhuma virtude , nem comete pecado : os conceitos de bem e mal foram ultrapassados , só resta a Luz .
7º estágio : A importância desta etapa ressalta por si mesma .
A ênfase sobre a solidão construtiva ( a ser recolocada posteriormente ) é vital , pois é somente sozinho que o homem pode olhar para o seu próprio ser , escutar a própria harmoniosa melodia , sempre maior que sons isolados , que suas notas componentes , e só perceptível em sua " totalidade " .

23- Quadro VIII : Desapegando-se de si mesmo  

Silente já do Touro esquecido .
Ele se une ao luar embevecido ;
Não mais importam os dias tormentosos 
A vagar pelos ermos pantanosos ,
Onde , perdido , caminhava a esmo 
À procura do Touro , de si mesmo ,
Tão humilde , tão simples , tão sozinho . . .
Não cogita em seguir nenhum Caminho .

Explicação VIII :

Esquecer o Touro não basta : é preciso que o pastor se esqueça de si mesmo em todos os sentidos , sobretudo das ideias de santidade . Se " Eu sou um Buda " prescinde da autoconfirmação , o mesmo deve ocorrer com o estágio de " Estou purificado do orgulhoso sentimento de ser Buddha " . A pureza inerente à Mente macula-se com a ponta de orgulho espiritual acarretada pela última afirmação , o que impede a conquista da Paz suprema e da Libertação .
" Apegar-se à própria Iluminação é tão doentio quanto apresentar um eu com loucura ativa " , reza um antigo aforisma Zen .
Libertando-se do pressuposto de que o mundo do Vazio é diferente do mundo da forma , o iluminado desapega-se do gosto da própria Iluminação . Essa última e a ilusão de separatividade são igualmente danosas . O crescimento da Iluminação não está condicionado a ser ou não budista ou seguir regras religiosas . O " não cogitar em seguir nenhum Caminho " reporta-se aos diversos " ismos " espalhados pelo mundo .
8º estágio : Aqui terminava a primitiva série chinesa . O círculo vazio representa nada mais haver para diferenciar o homem do Todo . Ele é tão puro e natural , que somente a Lua Cheia ( a plenitude da Luz brilhando na escuridão da noite da ignorância ) , o espaço vazio corresponde a este grau de Iluminação perfeita , sem jaça , sem névoas de orgulho .

24- Quadro IX : Retornando à Fonte 


 A Roda gira sem nada mover :
Ouvir é não ouvir , ver é não ver .
Voltou à Origem , retornou à Fonte ;
O Sol sempre a seguir no horizonte ,
Fluindo , a fonte cristalina espelha 
A flor , naturalmente flor vermelha . . .
Sozinho , na cabana , em paz viceja .
O que existe lá fora não deseja . . . 

Explicação IX : 

Incerteza e confusão desvaneceram-se ; sua ausência permite a Paz , o retorno à Fonte , donde a Vida jorra plena , espontânea , natural , sem pedir licença a ninguém para apresentar-se tal como é em seu esplendor , em suas miríades de formas , sejam elas agradáveis ou não ao homem . Nele , agora , o êxtase da Iluminação desapareceu . Liberto dos objetos dos sentidos , esquecido de si mesmo , absorve-se tão intensamente no que ouve e vê , que seu ouvir é " não ouvir " , seu ver é " não ver " , pois seu ato é perfeito , isento de todas as artificialidades , plenamente natural . É , e o sabe , parte da Verdade Única , que abarca o Cosmos como um todo , fazendo-o ser vida menor dentro da Vida Maior .
Não mais sente necessidade de justificar sua presença na Vida através do trabalho árduo , projeção social , num interminável ir e vir sem meta definitiva e feliz . A solidão lhe apraz ; nela viceja , floresce , vive o " adequado uso da Sabedoria " , o TAO .
9º estágio : Está enfim apto para viver a vida menor no seio da Vida Maior em todas as situações , em todos os lugares , em todos os estados de consciência . Sua intrínseca Pureza jamais fora maculada por grãos de poeira : não há nenhum espelho a espanar . Compreendendo que sua pessoa abrange o Universo , que poderá almejar que não seja sua Herança Divina ?

25- Quadro X : Convivendo na Praça do Mercado 

Com mãos que abençoam , ele vem à cidade .
Fechada está a porta de sua velha choça .
Nem mesmo do mais sábio a extrema acuidade ,
Vê algo diferente no homem que o roça 
E segue sorridente sua própria estrada ,
Sem pisar de algum Buddha a divina pegada .

Cedo co'a tigela na mão , ele vai ao mercado ,
Tarde retorna à casa , ao bordão arrimado .
Faz de quem bebe vinho com alegria 
Uma fraterna , dileta , grata companhia 
Que partilha também com qualquer açougueiro ;
Ele , em todos , percebe o Buddha Verdadeiro .
Descalço , peito nu , na Praça do Mercado ,
De cinza recoberto , de lama salpicado ,
Ri : um riso franco , livre , aberto . . .
Os místicos poderes dos Devas , ele os esquece ,
Mas , a seu toque , a árvore seca - é certo -
Toda verde se faz e , terna , refloresce . . .

Explicação X :

Tornou-se finalmente o seguidor de seu próprio Caminho , sem tentar seguir os passos dos antigos e sábios Mestres . Nele não são mais visíveis os sinais de perfeição ( nem cheiro de santidade nem aura de Iluminação ) . Contudo , sua pureza e realização espiritual lhe permitem passear pela Praça do Mercado , o imperfeito e poluído convívio mundano , trazendo paz e esperança ao coração dos homens imersos na escuridão , no desespero , no vício , guiando-os para o Caminho de Buddha . A fim de ajudar os homens a dominar suas ilusões , liberá-los de suas loucuras e de seus apegos , o ser de mais elevada espiritualidade não hesita em saborear com eles a bebida alcoólica , de conviver com açougueiros , infringindo assim postulados básicos do Budismo : a proibição do álcool , a profissão não correta por comerciar com o sofrimento animal . Nada tem o poder de macular sua pureza : como o Lótus , símbolo budista da pura perfeição , ele tem suas raízes na lama , sem que ela macule as alvas pétalas , onde fulge a Gota de Orvalho , a jóia da Iluminação .
10º estágio : Sua simples presença entre os homens é uma bênção para o mundo . Sua alegria franca e natural prova que toda a sua personalidade está impregnada de uma tal força de irradiação interior que , mesmo sem recorrer aos " poderes " ( siddhis ) , decorrentes de seu elevado grau de Iluminação , a própria Natureza já o tem " por um de seus criadores " , abrindo " de par em par diante dela , as portas de suas câmaras secretas , desnudando ao seu olhar os tesouros ocultos nas profundezas do seu seio virgem " .
Seu estágio atual não lhe permite renunciar ao mundo , ser um escapista , abandonando assim ao desamparo todos os angustiados ignorantes que devem haurir conhecimento de seu Saber , paz de sua Harmonia , verdade de sua Compaixão .
Se não houver dedos a apontar para a Iluminação , como podem os sencientes transformarem-se em pastores capazes de apascentar o Touro ?
Tornar-se a Compaixão Absoluta não é um alvo a atingir , um programa a cumprir , um atributo a conquistar . É ser " a Lei das Leis - a harmonia eterna , o próprio ser de Alaya , uma essência universal sem praias , a luz da justiça eterna , o acordo de tudo , a lei do eterno amor " .
Assim sendo , a solidão-afastamento do borborinho comunal é um contra-senso . O fato de estar sempre centrado em si mesmo , propicia ao Iluminado um outro tipo de solidão-paz em que , vivo e alerta , no meio do turbilhão , ele encontra mais silêncio , mais vida .
Solitário , ele o será sempre porque é um religioso , um anagarika , um sem lar . Sua consciência é um oásis solitário , onde ele se refugia quando , no meio da multidão a quem distribui amor , ele permanece consciente , vivaz , alerta , mas só , inteiramente só no santuário iluminado de seu próprio Ser . Então ele " é " o Homem solitário porque é único , é integro , é todo Luz . Sua solidão é bela , suave , silente Paz .
É o ser humano liberto , iluminado , bendito ! o Buddha compassivo foi , é e será sempre ele mesmo ; ele o sabe , porque assim o sente e vive Aqui e Agora .
Fina jóia preciosa , gema pura ,
já consegue brilhar em plena lama ,
como ouro de lei , também , fulgura 
no ardente esplendor da própria chama .
Assim também tu podes vir a ser , leito amigo . . .
Haja Luz em teu coração .
Bênçãos sobre todos os seres .


   

Texto : do livro A Doma do Touro ( Ramanadi )
Deixe o seu Comentário .  

5 comentários: