domingo, 15 de julho de 2012

" A Consciência sem Fronteiras "

METADE DA QUESTÃO

Será que você já se perguntou por que a vida redunda em opostos ? Por que tudo o que você valoriza é o elemento de um par de opostos ? Por que todas as decisões são entre opostos ? Por que todos os desejos são baseados em opostos ? 
Repare que todas as dimensões espaciais e direcionais são opostos : em cima e embaixo , dentro e fora , alto e baixo , comprido e curto , norte e sul , grande e pequeno , aqui e lá , esquerda e direita . E repare que todas as coisas que consideramos sérias e importantes são um dos pólos de um par de opostos : bem e mal , vida e morte , prazer e dor , Deus e Satã , liberdade e escravidão .
Assim também nossos valores sociais e estéticos são sempre colocados em termos de opostos : sucesso e fracasso , bonito e feio , forte e fraco , inteligente e obtuso . Até nossas mais altas abstrações baseiam-se em opostos . A lógica , por exemplo , preocupa-se com o verdadeiro e o falso ; a epistemologia , com a aparência e a realidade ; a ontologia , com o ser e o não-ser . O nosso mundo parece ser uma grande coleção de opostos .
Esse fato é um lugar-comum tão grande que quase não merece ser mencionado ; mas , quanto mais ponderamos a seu respeito , mais nos damos conta de sua surpreendente peculiaridade . Isso porque a natureza , ao que parece , nada sabe desse mundo de opostos no qual as pessoas vivem . A natureza não cria rãs verdadeiras e rãs falsas , nem árvores morais e árvores imorais , nem oceanos corretos e oceanos incorretos . Não há vestígio algum na natureza de montanhas éticas e montanhas antiéticas . Tampouco existem coisas como espécies bonitas e espécies feias - pelo menos não para a natureza , que fica feliz em produzir todos os tipos . Thoreau disse que a natureza nunca pede perdão ; e aparentemente , isso se dá porque a natureza não conhece os opostos de certo e errado , e assim não reconhece o que os seres humanos imaginam ser erros .
É verdade certa que algumas das coisas que denominamos " opostos " parecem existir na natureza . Há , por exemplo , rãs grandes e rãs pequenas , árvores grandes e árvores pequenas , laranjas maduras e laranjas verdes . Mas isso não é um problema para elas , isso não as mergulha em paroxismos de ansiedade . Podem até existir ursos espertos e ursos bobos , mas isso não parece afetá-los muito . Simplesmente não se encontram complexos de inferioridade nos ursos .
Do mesmo modo , a vida e a morte existem no mundo da natureza , mas novamente não parecem atingir as dimensões atemorizantes a elas atribuídas no mundo dos humanos .
Um gato muito idoso não fica paralisado por ondas de terror frente à sua morte iminente . Ele , com calma , caminha até a floresta , enrodilha-se sob uma árvore e morre . Uma andorinha irremediavelmente doente empoleira-se confortável no galho de um chorão , e fixa o olhar no pôr-do-sol . Quando afinal não consegue mais ver a luz , fecha os olhos pela última vez e cai docemente no chão . Quão diferente é o modo como o homem encara a morte :
Não penetre resignado na noite acolhedora 
Revolte-se , revolte-se contra a morte da luz .
Embora a dor e o prazer apareçam de fato no mundo da natureza , eles não são fontes de preocupação . Quando um cão está com dor , põe-se a ganir . Quando não simplesmente não se preocupa com isso . Ele não teme a dor futura nem lamenta a dor passada . Isso parece ser uma coisa muito simples e natural .
Dizemos que tudo isso é verdadeiro porque , em resumo , a natureza é boba . Mas essa não é razão suficiente . Estamos apenas começando a perceber que a natureza é muito mais esperta do que gostaríamos de imaginar . O grande bioquímico Albert Szent-Gyorgyi nos fornece um exemplo singular :
Quando ingressei no Instituto de Estudos Avançados em Princeton , eu o fiz na esperança de que , convivendo com aqueles grandes físicos nucleares e matemáticos , aprenderia algo sobre a matéria viva . Mas quando revelei que em qualquer sistema vivo há mais de dois elétrons , os físicos pararam de falar comigo . Com todos aqueles computadores , eles não conseguiam dizer o que o terceiro elétron poderia fazer . O mais notável nisso tudo é que o elétron sabe exatamente o que deve fazer . Logo , aquele pequeno elétron sabe algo que todos os sábios de Princeton não sabem , e isso só pode ser algo muito simples .
Tenho a impressão que a natureza não é apenas mais esperta do que imaginamos ; a natureza é mais esperta do que podemos imaginar . Afinal , ela também produziu o cérebro humano , a respeito do qual tecemos muitos elogios como sendo um dos instrumentos mais inteligentes do cosmo . E será que um idiota completo pode criar uma verdadeira obra-prima ?
Segundo o livro do Gênesis , uma das primeiras tarefas atribuídas a Adão foi dar nome aos animais e plantas existentes na natureza . Isso porque a natureza não vem já toda rotulada com etiquetas contendo os nomes , e seria de grande conveniência se pudéssemos classificar e nomear todos os diversos aspectos do mundo natural . Em outras palavras , Adão foi encarregado de classificar a complexidade das formas e processos da natureza e de escolher nomes para eles .
" Esses animais parecem-se uns com os outros e não se parecem nada com aqueles animais , portanto vamos chamar a este grupo " leões " e àquele grupo " ursos " . Vejamos , posso comer este grupo de coisas , mas não aquele grupo . Vamos chamar a este grupo " uvas " e àquele " pedras " .
Mas a principal tarefa de Adão não era tanto a de inventar nomes para os animais e as plantas , por mais trabalhoso que isso fosse . Sem dúvida , a parte crucial do seu trabalho era o processo de classificação propriamente dito . Isso porque ( a menos que houvesse apenas um espécime de cada animal , o que é improvável ) Adão deveria agrupar os animais que eram semelhantes e aprender a diferenciá-los mentalmente dos animais dessemelhantes . Deveria aprender a traçar uma linha limítrofe mental entre os diversos grupos de animais , pois apenas ao fazer isso é que poderia reconhecer completamente os diferentes animais e , portanto , dar-lhes um nome .
Em outras palavras , a grande tarefa de que Adão iniciou foi a construção de linhas divisórias mentais ou simbólicas .
Adão foi o primeiro a delinear a natureza , a dividi-la mentalmente , a demarcá-la . Adão foi o primeiro grande cartógrafo . Adão traçou limites .
Esse mapeamento da natureza foi tão bem sucedido que , até hoje , passamos boa parte de nossa vida traçando limites .
Toda decisão que tomamos , cada ação nossa , cada palavra nossa é baseada na construção , consciente ou inconsciente , de limites . Não estou me referindo agora apenas a um limite de auto-identidade - por mais que isso seja importante - , mas a todos os limites no sentido mais amplo . Tomar uma decisão significa traçar uma linha limítrofe entre o que escolher e o que não escolher . Desejar alguma coisa significa traçar uma linha limítrofe entre coisas agradáveis e coisas dolorosas e depois dirigir-se às primeiras . Afirmar uma idéia significa traçar uma linha limítrofe entre conceitos considerados verdadeiros e conceitos considerado não-verdadeiros .
Receber educação é aprender onde e como traçar limites , e o que fazer com os aspectos limitados . Estabelecer um sistema judicial é traçar uma linha limítrofe entre aqueles que se enquadram nas leis da sociedade e aqueles que não se enquadram . Empreender uma guerra é traçar uma linha limítrofe entre aqueles que estão do nosso lado e aqueles que estão contra nós . Estudar ética é aprender como traçar uma linha limítrofe que revele o bem e o mal . Dedicar-se à medicina ocidental é traçar com maior clareza um limite entre a doença e a saúde . É bastante óbvio que , dos incidentes sem importância às grandes crises , das pequenas decisões aos grandes negócios , das leves preferências às paixões ardentes , nossas vidas são um processo de traçar limites .
O fato peculiar acerca de um limite é que , por mais complexo e rarefeito que seja , ele de fato define apenas um interior e um exterior . Podemos , por exemplo , traçar a mais simples das linhas limítrofes , um círculo , e verificar que apresenta um interior e um exterior .


                                         dentro                                     fora


Mas note-se os opostos " dentro versus fora " não existiam em si mesmos até traçarmos o limite do círculo . É a própria linha limítrofe , em outras palavras , que cria um par de opostos . Em resumo , traçar limites é produzir opostos .
Começamos a ver assim que a razão pela qual vivemos num mundo de opostos é precisamente porque a vida como a conhecemos é um processo de traçar limites .
E o mundo de opostos é um mundo de conflitos , como o próprio Adão logo descobriria . Ele deve ter ficado fascinado com o poder criado pelo ato de traçar linhas e invocar nomes . Imaginem : um simples som como " céu " poderia representar toda a imensidão e vastidão da abóbada celeste , que era , através do poder das linhas limítrofes , reconhecida como diferente da terra , da água , do fogo . Assim , ao invés de manusear e manipular objetos reais , Adão podia manipular em seu pensamento esses nomes mágicos que representavam os próprios objetos . Antes da invenção de limites e nomes , por exemplo , se Adão quisesse dizer a Eva que achava que ela era tola como um jumento , ele teria de agarrar Eva e depois perambular até que também encontrasse um jumento , e depois teria de apontar para o jumento , em seguida apontar para Eva , aí pular para cima e para baixo e grunhir e fazer caretas idiotas . Mas agora , através da mágica das palavras , Adão podia apenas levantar a cabeça e dizer , " Meu Deus , querida , você é tão tola como um jumento " . Eva , que , por sinal , era de fato muito mais esperta que Adão , normalmente calava a boca . Isto é , ela se recusava a retribuir a ofensa com a mágica das palavras , pois sabia , bem no fundo , que as palavras são uma espada de dois fios , e que o que vive pela espada perece também pela espada .
Neste ínterim , os resultados dos esforços de Adão revelaram-se espetaculares , poderosos , mágicos , e , compreende-se , ele começou a tornar-se um pouco presunçoso . Começou a ampliar os limites e a adquirir conhecimento sobre lugares que seria melhor deixar intocados . Esse comportamento presunçoso culminou na Árvore do Conhecimento , que era na verdade a árvore do bem e do mal . E quando Adão reconheceu a diferença entre os opostos do bem e do mal , isto é , quando traçou essa linha fatal , seu mundo desmoronou . Pecando Adão , todo o mundo dos opostos , que ele próprio ajudara a criar , voltou-se contra ele . A dor e o prazer , o bem e o mal , a vida e a morte , o trabalho e o lazer - toda a série de opostos conflitantes abateu-se sobre a humanidade .
O fato perturbador que Adão aprendeu foi que toda linha limítrofe é também uma linha de batalha em potencial , de modo que o simples fato de traçar um limite é um preparar-se para o conflito - mais especialmente , para a guerra dos opostos , a luta angustiante da vida contra a morte , do prazer contra a dor , do bem contra o mal . O que Adão aprendeu - e aprendeu tarde demais - é que " onde traçar a linha ? " significa na verdade " onde terá lugar a batalha " .
O fato é que vivemos num mundo de conflitos e opostos porque vivemos num mundo de limites . Como toda linha limítrofe é também uma linha de batalha , eis aqui uma dificuldade humana : quanto mais firmes os limites de uma pessoa , mais entrincheiradas serão suas batalhas , Quanto mais me agarro ao prazer , mais necessariamente temo a dor . Quanto mais busco a bondade , mais me atormenta o mal . Quanto mais procuro o sucesso , mais tenho horror ao fracasso . Quanto mais me apego à vida , mais aterradora torna-se-me a morte .
Quanto mais valorizo algo , mais me atormenta a sua perda . A maioria de nossos problemas , em outras palavras , são problemas de limites e dos opostos que eles criam .
Agora , nosso modo habitual de tentar resolver esses problemas é tentar erradicar um dos opostos . Lidamos com o problema do bem e do mal tentando exterminar o mal .
Lidamos com o problema da vida e da morte tentando esconder a morte sob imortalidades simbólicas . Em filosofia , lidamos com opostos conceituais tentando descartar um dos pólos ou tentando reduzi-lo ao outro . O materialista tenta reduzir a mente à matéria , enquanto o idealista tenta reduzir a matéria à mente . Os monistas tentam reduzir a pluralidade à unidade , os pluralistas tentam explicar a unidade como uma pluralidade .
O fato é que sempre tendemos a tratar o limite como real , manipulando depois os opostos criados pelo limite . Nunca parecemos questionar a existência do próprio limite . Devido ao fato de acreditarmos que o limite é real , imaginamos firmemente que os opostos são irreconciliáveis , separados , para sempre apartados . " O leste é o leste , o oeste é o oeste e nunca os dois se encontrarão . " Deus e Satã , a vida e a morte ; o amor e o ódio , o eu e o outro - são todos tão diferentes , dizemos , como o dia e a noite .
Assim , supomos que a vida seria perfeitamente desfrutável se simplesmente pudéssemos erradicar todos os pólos negativos e indesejados dos pares de opostos . Se pudéssemos vencer a dor , o mal , a morte , o sofrimento , a doença , de modo que a bondade , a vida , a alegria e a saúde prevalecessem - isso , na verdade , seria uma vida boa , e de fato essa é exatamente a idéia que muitas pessoas têm do Paraíso . O Paraíso passou a significar , não uma transcendência de todos os opostos , mas o local onde todas as metades positivas dos pares de opostos estão acumuladas , enquanto o inferno é o local onde estão agrupados todas as metades negativas : dor , sofrimento , tormento , ansiedade , doença .
Esse objetivo de isolar os opostos e depois se fixar nas metades positivas , ou buscá-las , parece ser uma característica distintiva da civilização ocidental progressista - sua religião , sua medicina , sua indústria . Afinal , o progresso é apenas o progresso em direção ao positivo e para longe do negativo .
No entanto , apesar dos óbvios confortos da medicina e da agricultura , não há a menor evidência de que , depois de séculos de ênfase nos positivos e de tentativas de eliminar os negativos , a humanidade seja mais feliz , mais satisfeita , ou que esteja mais em paz consigo mesma . Na realidade , a evidência disponível sugere exatamente o contrário : esta é a " era da ansiedade " , do " choque do futuro " , da frustração e da alienação epidêmicas , do enfado em meio à riqueza e da falta de significado em meio à fartura .
Parece que o " progresso " e a infelicidade podem muito bem ser lados opostos da mesma moeda , que não cessa de voltar-nos ora a sua cara , ora a sua coroa . Isso porque o próprio anseio de progredir implica um descontentamento com a situação atual , de modo que , quanto mais procuro o progresso , mais profundamente descontente me sinto . Na busca cega do progresso , nossa civilização institucionalizou a frustração . Isso porque , procurando acentuar o positivo e eliminar o negativo , esquecemos completamente que o positivo é definido apenas em termos do negativo . Os opostos podem ser , de fato , tão diferentes como o dia e a noite , mas o aspecto essencial é que , sem a noite , não seríamos nem mesmo capazes de reconhecer algo chamado dia . Destruir o negativo é , ao mesmo tempo , destruir todas as possibilidades de desfrutar o positivo . Assim , quanto mais bem sucedidos somos nessa aventura de progresso , na verdade mais fracassamos ; e mais aguda torna-se nossa sensação de total fracasso .
A raiz de todo o problema é nossa tendência de considerar os opostos como irreconciliáveis , como completamente separados e divorciados uns dos outros . Até mesmo os mais simples dos opostos , tais como comprar e vender , são considerados como dois acontecimentos diferentes e separados . É verdade que comprar e vender são num certo sentido diferentes , mas também são - e essa é a questão - complementares inseparáveis . Toda vez que compramos algo , alguém na mesma ação vendeu algo . Em outras palavras , comprar e vender são apenas dois extremos de um único acontecimento , isto é , a transação comercial propriamente dita .
E embora os dois extremos da transação sejam " diferentes " , o acontecimento simples que eles representam é único e o mesmo .
Assim também todos os opostos compartilham uma identidade implícita . Isto é , não importa quão vivas possam nos parecer as diferenças entre eles ; os opostos permanecem completamente inseparáveis e mutuamente interdependentes , e isso pela simples razão que um não poderia existir sem o outro . Sob essa perspectiva , não há obviamente nenhum interior sem exterior , nenhum alto sem baixo , nenhum prazer sem dor , nenhuma vida sem morte . Diz o velho sábio chinês Lao Tzu :


Há diferença entre o sim e o não ?
Há diferença entre o bem e o mal ?
Devo temer o que os outros temem ? Bobagem !
O ter e o não-ter surgem juntos 
O difícil e o fácil complementam-se 
O comprido e o curto contrastam-se
O alto e o baixo apoiam-se um no outro 
A frente e o fundo seguem-se um ao outro .


Chuang Tzu acrescenta ainda :


Assim , aqueles que dizem que gostariam de ter o certo sem 
o seu correlato , o errado , ou um bom governo sem o seu correlato ,
a anarquia , não compreendem os grandes princípios do 
universo , nem a natureza de toda a criação . também se poderia 
falar da existência do Céu sem a existência da terra , ou
do princípio negativo sem o positivo , o que é claramente impossível . No entanto , as 
pessoas continuam a discutir isso sem parar ; tais pessoas devem ser tolas ou tratantes .


A unidade interior dos opostos certamente não é uma idéia confinada à mística oriental ou ocidental . Se olharmos a física dos dias modernos , campo em que o intelecto ocidental conseguiu seus maiores avanços , o que verificamos é uma outra versão da realidade como uma união de opostos .
Na teoria da relatividade , por exemplo , os antigos opostos de repouso e movimento tornaram-se totalmente indistinguíveis , isto é , " cada um é ambos " . Um objeto que parece em repouso , para um observador , está ao mesmo tempo em movimento para um observador diferente . De modo semelhante , a separação entre onda e partícula desaparece nas " ondículas " , e o contraste entre estrutura e função evapora-se .
Até mesmo a antiquíssima separação entre massa e energia reduziu-se à E= mc de Einstein , e esses antigos " opostos " são agora considerados como dois aspectos da mesma realidade , realidade essa que Hiroxima tão violentamente testemunhou .
Do mesmo modo , opostos tais como sujeito e objeto e tempo e espaço são agora vistos como sendo tão mutualmente interdependentes que formam um contínuo entrelaçado , um único padrão unificado . O que chamamos " sujeito " e " objeto " são , como comprar e vender , apenas dois modos diferentes de abordar um único processo . E já que o mesmo é valido para o tempo e o espaço não podemos mais falar de um objeto localizado no espaço ou que acontece no tempo , mas somente de uma ocorrência espaço-temporal . A física moderna , em resumo , afirma que a realidade só pode ser considerada uma união de opostos . Nas palavras do biofísico Ludwig von Bertalanfffy :
Se o que foi dito é verdadeiro , a realidade é o que Nicolau de Cusa chamou coincidentia oppositorum . O pensamento discursivo sempre representa apenas um aspecto da realidade extrema , chamada Deus na terminologia de Cusa ; ele jamais consegue esgotar sua infinita multiplicidade . Logo , a realidade extrema é uma união de opostos .
Do ponto de vista coincidentia oppositorum - " a coincidência dos opostos " - , aquilo que imaginávamos ser totalmente separado e irreconciliável mostra-se , na expressão de von Bertalanffy , como " aspectos complementares da mesma e única realidade " .
É por todas essas razões que Alfred North Whitehead , um dos filósofos mais influentes deste século , elaborou sua filosofia de " organismo " e " existência vibratória " , que sugere que todos os " elementos fundamentais são em sua essência vibratórios " . Isto é , todas as coisas e acontecimentos que normalmente consideramos irreconciliáveis , tais como causa e efeito , passado e futuro , sujeito e objeto , são na verdade apenas a crista e o cavado de uma única onda , uma única vibração . Isso porque uma onda , apesar de ser um acontecimento único , só pode exprimir-se através dos opostos de crista e cavado , ponto alto e ponto baixo . Por essa mesma razão , a realidade não se encontra nem na crista nem no cavado em si mesmos , mas na unidade de ambos ( tente imaginar uma onda com cristas mas sem cavados ) . Obviamente , não existe uma crista sem cavado , um ponto alto sem um ponto baixo .
Crista e cavado - na realidade , todos os opostos - são aspectos inseparáveis de uma atividade subjacente . Assim , como coloca Whitehead , cada elemento do universo é " um fluxo e refluxo vibratório de uma atividade ou energia subjacente " .
Essa unidade interior de opostos é apresentada de forma extremamente clara na teoria de percepção da Gestalt .
De acordo com s Gestalt , nunca percebemos um objeto , acontecimento ou figura , a não ser em relação a um plano de fundo contrastante . Por exemplo , aquilo que chamamos " luz " é na realidade uma figura de luz destacando-se contra um fundo escuro . Quando olhamos para o céu numa noite escura e percebemos o brilho de uma estrela luminosa , o que estamos realmente vendo - o que meus olhos de fato " absorvem " - não é a estrela em separado , mas o campo inteiro , ou gestalt , da " estrela luminosa mais o fundo escuro " . Por mais drástico que seja o contraste entre a estrela luminosa e seu fundo de escuridão , a questão é que sem um nunca poderíamos perceber o outro . " Claro " e " escuro " são , portanto , dois aspectos correlativos de uma única Gestalt sensória .
De modo semelhante , não somos capazes de perceber o movimento a não ser em relação ao repouso , nem o esforço sem o descanso , nem a complexidade sem a simplicidade , nem a atração sem a repulsão .
Da mesma maneira , nunca percebemos o prazer exceto em relação à dor . De fato , podemos estar nos sentindo muito à vontade e muito bem neste momento , mas nunca seríamos capazes de perceber isso se não fosse pela existência progressiva do desconforto e da dor . É por isso que o prazer e a dor sempre parecem alternar-se , pois é apenas em seu contraste e alternância mútuos que a existência de cada um pode ser reconhecida . Assim , por mais que se aprecie um e deteste o outro , a tentativa de isolá-los é inútil . Como diria Whitehead , o prazer e a dor são apenas a crista e o cavado inseparáveis de uma única onda de percepção , e tentar acentuar a crista positiva e eliminar o cavado negativo é tentar eliminar completamente a própria onda de percepção .
Talvez possamos começar a compreender por que a vida , quando considerada como um mundo de opostos separados , é tão completamente frustante , e por que o progresso , na realidade , tornou-se não um crescimento mas um câncer . Ao tentar separar os opostos e fixar aqueles que julgamos positivos , tais como o prazer sem a dor , a vida sem a morte , o bem sem o mal , estamos na verdade perseguindo fantasmas sem a menor realidade . Poderíamos também lutar por um mundo de cristas sem cavados , de compradores sem vendedores , de esquerdas sem direitas , de dentro sem fora . Portanto , como mostrou Wittgenstein , já que nossos objetivos não são elevados mas sim ilusórios , nossos problemas não são difíceis , mas sim absurdos .
O fato de que todos os opostos - tais como massa e energia , sujeito e objeto , vida e morte - se identificam a ponto de serem perfeitamente inseparáveis ainda parece inacreditável para a maioria de nós . Mas isso é apenas porque aceitamos como real a linha limítrofe entre os opostos . Convém lembrar que são os próprios limites que criam a existência aparente de opostos separados . Falando às claras , dizer que " a realidade essencial é uma unidade de opostos " é dizer que na realidade essencial não há limites . Em lugar algum .
A questão é que somos tão fascinados por limites , tão dominados pela magia do pecado de Adão , que esquecemos totalmente a verdadeira natureza das próprias linhas limítrofes . Isso porque essas linhas , sejam de que tipo forem , nunca são encontradas no mundo real propriamente dito , mas apenas na imaginação dos cartógrafos . Há com certeza muitos tipos de linhas no mundo natural , como a linha litorânea situada entre os continentes e os oceanos que os cercam .
A natureza apresenta , de fato , todos os tipos de linhas e superfícies - o contorno das folhas , a pele dos organismos , a linha do horizonte , o contorno de árvores e de lagos , as linhas divisórias entre luz e sombra , as linhas que destacam todos os objetos de seu meio ambiente . É óbvio que essas superfícies e linhas estão de fato ali ; mas uma linha qualquer , como por exemplo a linha litorânea , não representa apenas uma separação entre terra e água , como supomos normalmente . Como observou Alan Watts , as assim chamadas " linhas divisórias " também representam , de modo preciso , os locais onde a terra e a água se tocam . Isto é , as linhas juntam e unem tanto quanto dividem e separam ; em outras palavras , não são limites ! Há uma enorme diferença entre uma linha e um limite , como veremos logo mais .
Portanto , a questão é que as linhas unem os opostos do mesmo modo que os separam . E essa é exatamente a essência e a função de todas as verdadeiras linhas e superfícies da natureza . Elas explicitamente demarcam os opostos ao mesmo tempo em que implicitamente os unem . Tracemos , por exemplo , a linha que representa uma figura côncava , do seguinte modo :


côncavo                            ( convexo )

Mas note de imediato que com a mesma linha também criei uma figura convexa . Isso é o que o sábio taoísta Lao Tzu queria dizer quando afirmou que todos os opostos surgem simultânea e mutuamente . Como o côncavo e o convexo nesse exemplo , eles chegam à existência juntos .
Além disso , não podemos dizer que a linha separa o côncavo do convexo , porque há somente uma linha , que é totalmente partilhada por ambos . A linha , longe de separar o côncavo do convexo , torna absolutamente impossível a existência de um sem o outro . Devido a essa linha única , não importa como desenhemos um côncavo , desenhamos também um convexo , porque o contorno interno do côncavo é o contorno externo do convexo . Assim , jamais encontraremos um côncavo sem um convexo , pois estes , como todos os opostos , estão destinados a abraçar-se intimamente para sempre .
A questão é que todas as linhas que encontramos na natureza , ou que nós mesmos construímos , não apenas distinguem opostos diferentes , mas também ligam os dois numa união inseparável . Uma linha , em outras palavras , não é um limite . Isso porque uma linha , seja mental , natural ou lógica , não apenas divide e separa , mas também junta e une .
Limites , por outro lado , são puras ilusões - fingem separar o que na verdade não é separável . Nesse sentido , o mundo real contém linhas , mas não verdadeiros limites .
Uma linha verdadeira torna-se um limite ilusório quando imaginamos que seus dois lados são separados e não têm conexão ; ou seja , quando reconhecemos a diferença externa dos dois opostos mas ignoramos sua unicidade interior .
Uma linha torna-se um limite quando esquecemos que o interior coexiste com o exterior . Uma linha torna-se um limite quando supomos que ele apenas separa mas não une ao mesmo tempo . Não há problemas em traçar linhas , contanto que não as confundamos com limites . Pode-se distinguir o prazer da dor ; é impossível separar o prazer da dor .
Nós criamos hoje as ilusões de limites muito à semelhança do que Adão criou , pois os pecados dos pais recaíram sobre seus filhos e filhas . Começamos por seguir as linhas da natureza - linhas litorâneas , linhas de florestas , linhas do céu , a superfície das pedras , a superfície da pele , e assim por diante - ou por construir nossas próprias linhas mentais ( que são idéias e conceitos ) . Através desse processo , arranjamos e classificamos aspectos de nosso mundo . Aprendemos a reconhecer a diferença entre o interior e o exterior de nossas classes : entre o que são pedras e o que não são pedras , entre o que é alto e o que não é alto , entre o que é bom e o que não é bom . . .
Já aí nossas linhas correm o risco de tornarem-se limites , pois estamos reconhecendo diferenças explícitas e esquecendo a união implícita . E esse erro é acentuado quando continuamos a nomear , a associar uma palavra ou símbolo ao interior e ao exterior de cada classe . Isso porque as palavras que usamos para o interior das classes , tais como " luz " , " alto " , " prazer " , são certamente destacáveis e separadas das palavras que usamos para o exterior das classes , como " escuridão " , " baixo " e " dor " .
Assim , podemos manipular os símbolos sem levar em conta seus opostos obrigatórios . Posso , por exemplo , criar uma frase que diz " quero o prazer " , e não há referência nessa frase ao oposto necessário do prazer , a dor . Posso separar o prazer e a dor em palavras , em pensamentos , embora no mundo real um nunca seja encontrado separado do outro . A esta altura , a linha entre o prazer e a dor torna-se um limite , e a ilusão de que os dois são separados parece convincente . Não notamos que os opostos são apenas dois nomes diferentes para o mesmo processo e imaginamos que há dois processos diferentes estabelecidos um contra o outro . Comentando a respeito disso , L.L. Whyte disse : " Assim , a mente imatura , incapaz de escapar de seus próprios preconceitos . . . está condenada a lutar na camisa-de-força de seu dualismo : sujeito/objeto , tempo/espaço , espírito/matéria , liberdade/necessidade , livre-arbítrio/lei . A verdade , que deve ser única , impregna-se de contradições . O homem é incapaz de pensar onde ele está , pois criou dois mundos a partir de um " .
Nosso problema , aparentemente , é que criamos um mapa convencional , com seus limites , do verdadeiro território da natureza , que não tem limites , e depois confundimos completamente os dois . Como Korzybski e os semanticistas gerais demonstraram , nossas palavras , símbolos , sinais , pensamentos e idéias são apenas mapas da realidade , não a própria realidade , porque " o mapa não é o território " . A palavra " água " não mata nossa sede . Mas vivemos num mundo de mapas e palavras como se fosse o mundo real . Seguindo as pegadas de Adão , tornamo-nos totalmente perdidos num mundo de mapas e limites puramente fantasiosos . E esses limites ilusórios , com os opostos que criam , tornaram-se para nós ardentes batalhas .
A maioria de nossos " problemas de vida " são portanto baseados na ilusão de que os opostos podem e devem ser separados e isolados uns dos outros . Mas já que todos os opostos são na realidade aspectos de uma única realidade subjacente , isso é como tentar separar totalmente as duas extremidades de um elástico . Tudo o que podemos fazer é puxar mais e mais forte - até que algo finalmente arrebente .
Assim , talvez possamos entender por que , em todas as tradições místicas do mundo inteiro , uma pessoa que vê além da ilusão dos opostos é chamada " liberta " . Estando ela " livre dos pares " de opostos , está livre , nesta vida , dos problemas e conflitos fundamentalmente absurdos envolvidos na guerra de opostos . Não manipula mais os opostos jogando um contra o outro na sua busca da paz , mas , em vez disso , transcende a ambos . Não coloca o bem contra o mal , mas posta-se além do bem e do mal . Não se agarra à vida contra a morte , mas é um centro de consciência que transcende a ambas . A questão não é separar os opostos e empreender um " progresso positivo " , mas sim unificar e harmonizar os opostos , tanto positivos como negativos , através da descoberta de uma base que transcende e abrange os dois . E essa base , como veremos logo mais , é a própria consciência da unidade . Por enquanto , notemos , como faz a escritura hindu Bhagavad Gita , que a libertação não é a liberdade em relação ao negativo , mas a liberdade completa em relação aos pares :
Satisfeito com a obtenção daquilo que surge por si mesmo .
Passando além dos pares , livres da inveja ,
Desprendido do sucesso ou do fracasso ,
Mesmo atuando , ele não está preso ,
Ele deve ser reconhecido como eternamente livre 
Aquele que não detesta nem suplica ;
Pois aquele que é livre dos pares ,
É facilmente livre do conflito .
Estar " livre dos pares " é , em termos ocidentais , a descoberta do Reino dos Céus na terra , embora os evangelistas populares tenham-no esquecido . Isso porque os Céus não são , como desejaria a religião popular , um estado todo de positivos , mas o estado de perceber a " não-oposição " ou " não-dualidade " , pelo menos de acordo com o Evangelho de São Tomé :
Eles lhe disseram : Podemos nós , por ser crianças , entrar no Reino ? Jesus lhes disse : Quando fizerdes de dois , um , e quando fizerdes do interior o exterior , e do exterior o interior , e do acima o abaixo , e quando tornardes o macho e a fêmea um só , então entrareis no Reino .
Essa idéia de não-oposição , de não-dualidade é a essência do Hinduísmo Advaita ( " advaita " significa " não-dual " ou " não-dois " ) e do Budismo Mahayna . A idéia é expressa de uma forma muito bonita num dos textos budistas mais importantes , o Lankavatara Sutra :
A falsa imaginação ensina que coisas como a luz e a sombra, o comprido e o curto , o branco e o preto são diferentes e devem ser discriminadas ; mas elas não são independentes entre si ; são apenas aspectos diferentes da mesma coisa , são termos de relação , não de realidade . As condições da existência não são de caráter mutualmente exclusivo ; em essência , as coisas não são duas mas uma .
Poderíamos multiplicar essas citações indefinidamente , mas todas apontariam para a mesma coisa : a realidade suprema é uma união de opostos . Os limites que sobrepomos à realidade é que a cortam em inúmeros pares de opostos . Logo , a afirmativa de todas as tradições de que a realidade está livre dos pares de opostos é uma afirmativa de que a realidade está livre de todo tipo de limite . A realidade é não-dual ; ou seja , ela é sem limites .
Assim , a solução para a guerra de opostos exige a rendição de todos os limites , e não o malabarismo progressivo dos opostos uns contra os outros . A guerra de opostos é sintoma de um limite considerado como real ; para curar os sintomas , devemos ir até a raiz da própria questão : nossos limites ilusórios .
Contudo , cabe aqui a pergunta : o que acontecerá com o nosso impulso para o progresso se considerarmos todos os opostos como uma só realidade ? Bem , com um pouco de sorte , vai parar - e com ele aquela insatisfação peculiar que se desenvolve na ilusão de que a grama do vizinho é sempre mais verde . Mas devemos ser bem claros a esse respeito .
Não estou querendo dizer que pararemos de fazer algum tipo de progresso na medicina , na agricultura e na tecnologia .
Simplesmente pararemos de alimentar a ilusão de que a felicidade depende disso . Isso porque , quando enxergarmos através das ilusões de nossos limites , veremos , aqui e agora , o Universo como Adão o viu antes do Pecado : uma unidade orgânica , uma harmonia de opostos , uma melodia de positivo e negativo , um prazer com o jogo de nossa existência vibratória . Quando percebermos que os opostos são um , a discórdia dissolver-se-á em concórdia , as batalhas tornar-se-ão danças , e antigos inimigos tornar-se-ão enamorados . Então estaremos em posição de fazer amizade com todo o nosso universo , e não apenas com metade dele .
Texto : Ken Wilber ( do livro Consciência sem Fronteiras págs. 31 a 48 )
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