segunda-feira, 31 de outubro de 2011

" PAI , SEJA FEITA A TUA VONTADE , ASSIM NA TERRA COMO NOS CÉUS "

À primeira vista , parece esta petição admitir a possibilidade do não cumprimento da vontade de Deus da parte do homem . E , de fato , é esta a opinião geral entre os não iniciados nos mistérios do reino de Deus . Existe uma literatura inteira que pretende fazer crer que a vontade de Deus seja constantemente frustrada pelos homens , como teria sido por muitos anjos .
Também eu , em pequeno , fui endoutrinado neste sentido .
Quase cheguei a ter pena de Deus pela " falta de sorte " que Ele parecia ter em todas as Suas empresas . Disseram-me que Deus havia creado grande número de puros espíritos , os anjos , mas que milhares deles se revoltaram contra o Creador , frustraram-lhe os planos e jamais voltarão a prestar-lhe obediência .
Depois disso , disseram-me , havia Deus tentado fazer prevalecer a Sua vontade em outro setor , no mundo dos homens , menos inteligentes que os anjos - pensando talvez que seres menos dotados fossem mais obedientes . Mas falhou também esta segunda tentativa , e a derrota foi relativamente pior que a primeira , porque a humanidade inteira se negou a cumprir a vontade de Deus , preferindo cooperar com Satanás , o inimigo número um de Deus , o chefe do primeiro grupo de revoltosos . A humanidade em peso , 100% , como se vê , aderiu ao movimento subversivo antidivino .
Após esse segundo fracasso , com o mundo dos homens , resolveu Deus remediar o mal ao menos nesse segundo setor , o que não fizera no primeiro , porquanto a reabilitação dos anjos revoltosos lhe parecia sem esperança , e por isso os condenara sumariamente a uma eternidade de tormentos .
Resolveu , pois salvar os homens rebeldes . Mas também esta nova tentativa falhou pela maior parte , tanto assim que , até hoje , quase dois mil anos após a vinda do Salvador , a imensa maioria da humanidade nem sabe do fato , mais de 2/3 do gênero humano não é cristão , e muitos do restante terço têm de cristão apenas o nome , não se guiando pelo espírito de Cristo , no teor de sua vida .
Em resumo : segundo a teologia tradicional , Deus foi sempre derrotado , total ou parcialmente , pelos anjos e pelos homens , que , graças a seu livre-arbítrio , lhe podem frustrar os planos . Existe a possibilidade de a maior parte , e mesmo a totalidade , dos seres livres negarem obediência a Deus , contrariando-lhe os planos , não apenas por certo tempo , mas até por toda a eternidade ; pois , segundo a teologia corrente , o reino de Satan é eterno . Segundo muitos autores e pregadores cristãos , aprovados pela autoridade eclesiástica , a maioria dos homens de fato se perde , como se perdeu a maior parte dos anjos .
De maneira que , se existe um ser realmente poderoso , é Satanás e não Deus , pois aquele se sai sempre com a " parte do leão " contra seu rival , levando a maior parte dos homens para seu partido , como já o fizera com os espíritos angélicos . Não seria , pois , lógico e razoável proclamar Satanás como Senhor Supremo ? Pois se ele é mais poderoso que Deus , segundo os fatos expostos ? E , uma vez que do inferno de Satanás não há saída , pode este ter , para toda a eternidade , um reino com maior número de súditos do que o reino de Deus .
( Satan : Conservamos , de propósito , a grafia hebraica " satan " ( em vez de satã ) a fim de manter o sentido real do termo , que significa " adversário " . )
( Deus : Veja o leitor a exposição detalhada desse ponto no meu livro " Profanos e iniciados " . )
É tempo para abandonarmos de vez essa ridícula teologia medieval , absolutamente incompatível com o espírito de Cristo e com a ideia que devemos formar do poder , da sabedoria , santidade e majestade de Deus - o Deus verdadeiro e real , e não essa triste caricatura da divindade . A cristandade do século XX tem urgente necessidade de uma reforma , reforma incomparavelmente mais radical do que a do século XVI , que em grande parte perfilhou estes absurdos .
Boa parte da humanidade está madura para essa reforma . É necessário que haja pioneiros suficientemente iluminados e dinâmicos para chefiar o movimento rumo ao Cristo real e ao Teísmo genuíno .
Na realidade , Deus nunca foi derrotado em nenhum dos planos , nem o será jamais por toda a eternidade . Se o fosse uma só vez , deixaria de ser Deus , e teriam razão os ateus , os agnósticos , os cépticos e indiferentistas de todos os tempos .
A nossa alternativa não é cumprir ou não cumprir a vontade de Deus , uma vez que creatura alguma pode deixar de realizar Seus planos . Deus é o único ser absolutamente invencível . A sua vitória será sempre completa , total , de 100% . Quem crê num outro Deus é ateu . Ateu é também todo homem que admite a possibilidade de um reino eterno em conflito com o reino de Deus . Todo homem que crê num inferno , pecado , punição ou num Satanás eterno nega a onipotência e o domínio universal de Deus e nega , assim , a existência do Deus real .
A nossa alternativa é outra : é a escolha entre um cumprimento gozoso e um cumprimento doloroso da vontade de Deus . É esta a única escolha que está em meu poder : o modo de cumprir a vontade de Deus , não o cumprimento ele mesmo . Enquanto a minha vontade personal for contrária à vontade de Deus - digamos excêntrica , fora do centro divino - é só com sofrimento que cumprirei a vontade divina , porque toda atitude oposta às eternas leis cósmicas é necessariamente dolorosa ; se assim não fosse , o universo de Deus não seria um cosmos ( sistema de ordem ) , mas sim um caos ( desordem e confusão ) . Se , por outro lado , a minha vontade coincidir com a vontade de Deus - se for concêntrica com ela , como dois círculos traçados ao redor de um centro comum - o cumprimento da vontade de Deus , cedo ou tarde , acabará por me encher de um senso de profunda e imperturbável felicidade .
Os seres da natureza inferior , inconsciente , sempre cumprem a vontade de Deus num ambiente de alegria e felicidade compatível com a sua natureza inconsciente ou subconsciente ; não há tristeza e infelicidade no mundo irracional ; a natureza é um incessante júbilo , uma festa perene de alegria , celebrada num ambiente crepuscular de semiconsciência .
Os seres racionais , humanos , aqui na terra , geralmente cumprem a vontade de Deus dolorosamente , com sofrimentos e sacrifícios , porque , individualmente conscientes , julgam poder encontrar felicidade no cumprimento da sua vontade humana contra a vontade divina , como é o caso dos egoístas de todos os matizes ; mas também os ascetas e outros homens empenhados em espiritualidade geralmente não experimentam duradoura felicidade nesse caminho , enquanto a concentricidade da sua vontade com a vontade divina não for perfeita , espontânea , fácil , profundamente deleitosa , como só acontece aos místicos , aos seres completamente cristificados .
O que , pois , pedimos nesta petição do Pai-nosso é que a nossa vontade humana venha a coincidir tão perfeitamente com a vontade divina que resulte em absoluta concentricidade , numa harmonia total das duas vontades , numa sincronização e sintonia do querer humano-divino , assim como acontece perenemente nas regiões dos seres que atingiram evolução superior e vivem nos planos da consciência cósmica ou universal , de onde o próprio Logos divino desceu para o nosso planeta de consciência individual e imperfeita . Não pedimos que a vontade divina seja feita , porque semelhante petição seria absurda , uma vez que a vontade divina nunca deixou de ser cumprida ; pedimos que esse cumprimento , ainda agora doloroso aqui na terra da consciência imperfeita , venha a ser gozoso , tão gozoso como é já agora da parte dos seres plenamente cristificados .
Nenhum ser pode frustrar os planos de Deus em caráter definitivo .
Existe uma literatura devocional que pretende fazer crer que a vida de Jesus Cristo foi uma vida triste , dolorosa , e que todo cristão genuíno deva levar vida de tristezas e dores . A verdade , porém , é que nunca foi vivida sobre a face da terra uma vida mais bela e jubilosa que a do Nazareno , uma vez que para ele a espiritualidade não era sacrificial e cruciante , como é geralmente para seus discípulos , mas divinamente deleitosa , tanto assim que ele compara o cumprimento da vontade do Pai celeste a um banquete ou manjar apetitoso : " O manjar é cumprir a vontade daquele que me enviou " .
O místico , o homem plenamente cristificado , é o único homem que pode realmente gozar as coisas belas do mundo de Deus , porque está em perfeita harmonia com o Deus do mundo , e o seu gozo não contém o menor ressaibo de amargura , como necessariamente acontece com o gozador profano , o homem que quer gozar o mundo de Deus sem estar em paz com o Deus do mundo . O homem espiritual não só conhece as alegrias puras do espírito , mas é também o único homem que pode gozar em cheio as belezas do mundo material , porque goza-as com liberdade interior - goza-as sem temor nem remorso , descobre-lhes a suavidade interna , que para o gozador materialista é desconhecida . A verdadeira mística é poesia e delícia , porque é retidão e racionalidade . Pensam os inexperientes que a mística e a racionalidade sejam duas coisas incompatíveis e mutualmente exclusivas , quando na verdade o único racionalista genuíno é o místico ; é realista por excelência , como o Cristo , que , sendo o rei da mística , era também o rei da racionalidade . Com efeito , tanto mais realista e racional é o homem quanto mais espiritual e místico . Deus , o Espírito infinito , é também a Razão sem limites e a Realidade absoluta .
O que não é feito com felicidade e espontânea alegria não tem garantia de perpetuidade , como vemos em todos os reinos da natureza . Se tivéssemos de comer e beber e dormir e procrear filhos unicamente pelo estrito senso do dever , já não existiria ser vivo sobre a terra , e a humanidade estaria extinta há muito tempo . A natureza sabe porque associou o deleite a todas as coisas necessárias . O mesmo acontece nas regiões superiores da vida . Enquanto a vida espiritual for para mim um sacrifício diário e uma tortura perene , não tenho garantia de perseverança no terreno da espiritualidade ; cedo ou tarde , em lances críticos , a minha " virtude " falhará , como acabarão por falhar todas as atitudes difíceis e penosas . Só no dia em que os cruciantes imperativos da ética se transformarem em exultantes optativos da mística ; quando a amargura do dever se converter na suavidade do querer ; quando eu puder em verdade dizer com o salmista : " Eu amo a Tua lei , Senhor , e os Teus preceitos são a minha delícia " - só então terei sólida garantia para a perpetuidade da minha vida espiritual . Enquanto o amor para com meus inimigos me parecer absurdo ou heroico ; enquanto o receber me der maior felicidade que o dar ; enquanto o espírito do Sermão da Montanha me parecer apenas um longínquo idealismo teórico , e não um propínquo realismo prático - não terei uma espiritualidade feliz ; não terei feito a vontade de Deus aqui na terra assim como ela é feita nos céus . " Deus ama um doador alegre " - e não um servidor tristonho e gemebundo .
O Cristianismo não é somente a religião da cruz , é também , e muito mais , a religião da luz . Penúltimas são as sombras da Sexta-Feira Santa - últimas são as luzes da Páscoa . Penúltimo é o túmulo a encerrar o corpo do crucificado - último o túmulo vazio , incapaz de conter o corpo do ressuscitado . Nunca de árvore alguma brotaram tão belas flores como daqueles tronco sangrento a bracejar no topo do Gólgota , aureolado dos albores da Páscoa .
" Que é da tua vitória , ó Morte ?
Foi a morte tragada pela vida ! "
Dizíamos que a vida de Jesus não foi um perene sofrimento , como certos teólogos nos querem fazer crer . Todo sofrimento físico do chamado " rei das dores " não abrange 15 horas em 33 anos , desde a quinta-feira à noite até às três horas da tarde da sexta-feira . Quanto ao seu sofrimento moral e psíquico - a incompreensão do povo , a covardia dos seus discípulos , etc . - Jesus o sabia de antemão e o aceitou livremente como fenômeno concomitante da encarnação do seu Verbo divino na pessoa humana de Jesus . Realmente doloroso é o sofrimento que nos acontece como uma fatalidade absurda e sem finalidade ; mas um sofrimento aceito por compreensão e idealismo espiritual não é um sofrimento absurdo e revoltante .
Infelizmente , não faltam cristãos que só conhecem as tristezas do " Senhor Morto " , cujo corpo inerte carregam pelas ruas enlutadas , por entre lágrimas e gemidos - esquecidos das glórias do Cristo redivivo , do Rei Imortal dos séculos .
O Cristianismo , na frase lapidar de Albert Schweitzer , é uma afirmação do mundo que passou pela negação do mundo .
Quanto maior é a alegria com que alguém cumpre a vontade de Deus , tanto mais puro é o seu Cristianismo . O Cristianismo perfeito é um Cristianismo radiante .
Nada existe entre os homens que tamanhas falsificações tenha sofrido como o conceito de " vontade de Deus " . Todos os pecados e crimes que a humanidade tem cometido e todas as inevitáveis consequências dessas desordens morais , no plano físico e mental - tudo isso tem sido considerado como a " a vontade de Deus " . Se todos esses horrores de fato corressem por conta da vontade divina , seria Deus o maior dos monstros e o rei dos sadistas a deleitar-se nos sofrimentos das suas creaturas .
Nada mais frequente do que ouvir um doente dizer : " Paciência ! É a vontade de Deus " . O que ele entende é que a doença é um dom de Deus , o qual Deus , na sua inexplicável crueldade , tenha decidido enviar a seu filho .
Quando pessoa da família morre prematuramente , ou é vitimada por um acidente , procuram os sobreviventes consolá-la com a frase costumeira : " Deus assim o quis " .
Quando milhares de seres humanos morrem em consequência de epidemias ou carestias causadas por guerras ou criminosas explorações de egoístas profissionais , começam certos homens a duvidar da existência de um Deus de poder e amor .
Há também quem considere a Paixão e morte de Cristo como expressão da vontade de Deus , e não faltam teólogos que aduzam textos sacros como estas palavras de Jesus : " Pai se não é possível que passe de mim este cálice ( do sofrimento ) , faça-se a Tua vontade ! " .
É tão inveterado esse vezo de identificar as coisas ingratas e negativas com a vontade de Deus que poderíamos quase estabelecer a fórmula : tudo o que é doloroso é a vontade de Deus - e tudo que é agradável é contra a vontade de Deus .
Com semelhante teologia , naturalmente , afugentamos os homens que querem viver uma vida positiva e cheia e detestam uma existência negativa e vazia . Para eles , só pode haver duas classes de homens : os gozadores profanos e os sofredores espiritualistas ; os que gozam o mundo longe de Deus e os que gozam Deus longe do mundo . Mas como nem isto nem aquilo é Cristianismo genuíno e integral , não conseguem esses homens cristificar a suas vidas .
Só posso crer em um Deus , dizia Voltaire , que eu possa amar - mas esse Deus da teologia não é amável .
O gozador sabe que vive fora do Cristianismo - ao passo que o renunciador espiritualista , em geral , considera o seu escapismo negativo como puro Cristianismo e crê que tanto mais se aproxima do Cristo e de Deus quanto mais se entrega ao sofrimento . Para ele , o supremo ideal de espiritualidade é o " homem das dores " , o Jesus crucificado , o " Senhor morto " - e não o Cristo da Páscoa , o Rei Imortal dos séculos . E parece ter razão , tanto assim que o próprio Cristo recomenda a renúncia dos bens e prazeres materiais . O Cristianismo perfeito não consiste em sofrimento , mas , devido ao nosso pendor profano , o caminho dessa profanidade para a espiritualidade leva inevitavelmente através da renúncia , do desapego , da fuga das coisas materiais . Entre o materialismo de baixo e o Cristianismo de cima está o ascetismo intermediário . Como fator disciplinar e educativo , o ascetismo tem a sua razão de ser , e o próprio Jesus o recomendou àquele jovem ricaço . Se esse jovem tivesse passado corajosamente pela escola da renúncia externa e tivesse assim alcançado a liberdade interior , poderia , depois , ter possuído novamente bens materiais , sem o perigo de ser por eles possuído , como era nessa ocasião : não era um possuidor de muitos bens , mas era possuído e possesso de muitos bens , que eram seus males . É trágico ser possuído ou possesso de coisas materiais .
Diz o Evangelho que se retirou da presença de Jesus cheio de tristeza - e tinha razão ; pois não há coisa mais triste do que ser escravo dos seus escravos e possesso das suas posses . Era um materialista , esse jovem ; não teve a coragem de passar pela escola da renúncia a fim de alcançar a " gloriosa liberdade dos filhos de Deus " de possuir as suas posses sem ser por elas possuído .
Texto : Huberto Rohden ( do livro Metafísica do Cristianismo pag. 53 a 61 )
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