terça-feira, 12 de janeiro de 2010

" Morrer para renascer "

Sobre este assunto , as literaturas Ch'an e zen nos iludem : elas nos relatam diversos casos de Realização muito diferentes uns dos outros e frequentemente permanecem mudas sobre a forma que um determinado Mestre obteve sua libertação . Isso está de acordo com a ineficácia dos métodos e de qualquer técnica ; caso contrário , um homem liberto poderia dizer como fez e quanto tempo precisou para atingir seu objetivo . Sabemos apenas que os homens destinados à Realização afastam-se de qualquer tipo de compensação em algum momento de suas vidas consagrando-se unicamente àquele objetivo . Seu pensamento parece não se desviar para nada além daquilo . Em paralelo ao desinteresse comum , esses homens seguiram caminhos muito diferentes . No entanto , todos eles têm algo em comum : o fracasso , ou sucessivos fracassos se decidiram percorrer diversos caminhos . Esta é a via descendente dos fracassos repetidos até o fracasso final . Desejo citar sobre o tema uma notável intuição de Dag Hammarskjold : " Levado pelo labirinto da vida , chego a um momento e a um lugar onde compreendo que o caminho conduz a um triunfo que é uma catástrofe , e uma catástrofe que é um triunfo ... e que a única elevação possível para o ser humano está nas profundezas da humilhação " .
A morte do ego e o renascimento são simultâneos ; quanto aos momentos imediatamente anteriores à ' morte ' , são iguais para todos os homens . O estado interior nestes instantes está composto de uma humilhação completa e aceita , isto é , da visão de si mesmo como nada , como não sendo nada . O pensamento , desvalorizado , se detém . A afetividade também se dilui , porque o homem experimenta ao mesmo tempo sentimentos de igual intensidade : de um lado , o desespero nas suas próprias possibilidades , de outro , uma total confiança n'Ele a favor da abdicação do Eu . Nesse momento , finalmente , o homem deixa de fazer algo por sua Realização , desejando-a com todo o seu ser .
Citemos uma frase do zen : " O satori cai sobre nós de maneira imprevista , após esgotarmos todas as forças do nosso ser " .
Tais forças são aquelas dadas pelo demiurgo , constantemente orientadas para a felicidade terrestre , as compensações , as afirmações do nosso Eu , o sucesso . Em seu conjunto , essas forças são nossa orientação centrífuga arrebatada no labirinto da vida . Elas também representam armadilhas para o intelecto , quando se considera capaz de resolver de forma prática o enigma da condição humana ( os métodos ou técnicas ) .
O instante em que se esgotam todas as forças do nosso ser é o instante da Realização . Eis uma descrição do mesmo Ch'an : " O leve contato de um fio de baixa tensão origina uma explosão que afeta até as estruturas da Terra ; tudo o que jazia no espírito explode como uma erupção vulcânica ou brilha como um relâmpago " .
O labirinto da mitologia grega pode ser usado simbolicamente para compreender a evolução do homem em direção à morte-para-renascer , mas com a condição de serem introduzidas importantes modificações . Nosso labirinto , construído sobre o solo , é horizontal . Ele não contém qualquer saída nesse plano . Só é possível sair pelo centro , onde se encontra o Minotauro , e por um trajeto vertical . Esse trajeto passa pelo meio do Minotauro e é aquilo que a Metafísica Tradicional chama de eixo ou árvore do Céu . O homem nasce , no princípio de tudo , neste centro , porém não pode ter consciência do mesmo . A partir do aparecimento do intelecto , explora o mundo exterior em busca de compensações . Percorre diversos trajetos centrífugos que , em um determinado momento , revelam-se como impasses . À medida que os impasses explorados são excluídos , vai ficando encurralada em direção ao centro . Os gregos , que facilmente humanizavam seus deuses e deificavam seus heróis , fazem Teseu matar o Minotauro .
Em nosso labirinto simbólico e metafísico é o Minotauro quem devora Teseu , que encontra assim o eixo do Céu , é aspirado até o divino Absoluto e liberto da prisão que o labirinto representava para ele . No nosso ponto de vista esta exploração , que vai de impasse-fracasso a impasse-fracasso para finalmente ser devorado , é necessariamente uma via descendente . O caminho para o infinito passa pelo zero .
Em suma , na escala do microcosmo humano a Realização é uma revolução fantástica : no homem comum , o demiurgo dominava a afetividade e esta dominava todo o comportamento ; a Realização opera uma reviravolta que eleva o intelecto - que se transformou em Cósmico Mental - acima da afetividade , dando-lhe a Beatitude Divina . O demiurgo dirige apenas a parte animal ou vegetativa do ser humano . O que legitima o termo ' morte espiritual ' é o desaparecimento de toda a arquitetura egoista do Eu reinante .
A duração da evolução interior que vai do primeiro desejo da Realização aos últimos instantes desta morte-para-renascer é muito variável . Embora tenha sido de apenas dois anos para Ramana Maharshi , também pode durar dezenas de anos . Será que Buda estava pensando nisso quando , ao ser interrogado sobre a maior virtude humana , respondeu que era a paciência ?
Em primeiro lugar , a via descendente se traduz pela desvalorização das compensações . Quando pensamos em desfrutar algumas delas , uma voz logo se eleva em nós : " E depois ? " ou " Para quê ? " . E o ilusório prazer proposto não nos atrai mais .
À medida que a tela psíquica sobre a qual eram projetados os fantasmas compensatórios perde sua opacidade , o olho espiritual percebe , através dele , a noite profunda , isto é , a nostalgia primitiva do nosso abandono à vontade divina .
Isto é o que exprime Jesus crucificado ao gritar : " Meu Deus , meu Deus , por que me abandonaste ? " Ao nascer , quando a alma - para falar como Platão - cai num organismo humano , tudo passa por nós como se realmente tivéssemos sido abandonados por Deus .
À medida que o homem percebe a nostalgia primitiva - pois o processo é lentamente gradual - começa a sentir uma nova tristeza , aparentemente incondicionada , da qual ele procura as razões ; no entanto , não as encontra , ou elas não são proporcionais a essa tristeza profunda . Por outro lado , para utilizar esse sofrimento é preciso começar pela própria purificação , expulsando do pensamento essas circunstâncias .
O sofrimento continua a estar presente , e podemos então senti-lo conscientemente , sem pensar . Trata-se de um mal-estar difuso em todo o ser , em todo o corpo , talvez localizado a nível do coração . Essa primeira puruficação do sofrimento torna-se possível e engrandecida pela compreensão de que todo sofrimento moral , pequeno ou grande , traduz a nossa nostalgia de Deus . O homem ' liberto vivo ' - no qual essa nostalgia evidentemente desapareceu - é totalmente invulnerável ao sofrimento justamente porque a fonte deste último já não existe .
Esta é a verdadeira aceitação do sofrimento , que nada tem a ver com a resignação . As palavras de Jesus exprimem perfeitamente essa aceitação : " Pai , nas tuas mãos entrego o meu espírito ! "
Quando o homem chega ao fundo da Noite dos sentidos e do espírito ( são João da Cruz ) , sua sensibilidade e pensamento tendem a parar completamente , originando a Realização .
A um discípulo que perguntava qual era a última palavra do Ch'an , seu Mestre respondia : " É SIM " . O homem comum , diante daquilo que lhe causa pesar , adota uma atitude negativa de revolta ; esta , por sua vez , normalmente impotente , é cruel . Portanto , devemos aprender a adotar em todas as circustâncias uma atitude positiva , a entrar em acordo com nossas desgraças , assim como com nossa alegria . As felicidades são momentos de calma muito úteis , porém também devemos abençoar e exprerimentar totalmente as nossas infelicidades , sofrimentos e desgostos , já que só assim nossa condição egoista recebe os golpes que provocarão seu desaparecimento . Em nós é feito , então , um trabalho inconsciente que nosso intelecto seria incapaz de assumir e que unicamente realiza o si .
Nossas infelicidades ? Distinguimos perfeitamente os sofrimentos morais das dores físicas . O homem liberto , que não pode ser atingido por nenhum sofrimento moral , permanece sensível à dor física , não da mesma forma , mas com indiferença . Isso prova que no homem comum a dor física sempre está acompanhada de um sofrimento moral ; esse homem reivindica sempre um corpo indolor , e caso seja contrariado acaba desenvolvendo uma revolta psíquica dolorosa frequentemente impotente .
Mas queremos nos referir sobretudo ao sofrimento moral .
Seu aparecimento não pode ser compreendido tão facilmente como o da dor física , na qual os nervos sensitivos são irritados e conduzem essa irritação até o cérebro , até a consciência .
A explicação do sofrimento moral nos obriga a rever a questão primordial do ser ou não ser de Hamlet , que reside em todas as almas humanas . O homem possuí uma justa intuição de sua natureza divina , do Ele que é a sua Realidade Absoluta ; ao mesmo tempo , se define através de sua pessoa particular que , no entanto , tem a evidência constante de não possuir nenhum dos atributos divinos ; mas essa intuição não pode ser negada por ninguém porque é justa ( apesar do fato do Ele só existir no homem em estado de possibilidade ) . A presença simultânea no homem dessas duas evidências contrárias leva fatalmente ao ser ou não ser , problema que , com essa colocação , é insolúvel . Porém , durante a vida inteira o homem tenta resolver essa questão através de pretensão divina pessoal , isto é , dos sucessos que afirmam seu Eu .
Incessantemente , o homem comum faz esforços externos e internos para ser ' feliz ' . Ele procura compensações ; se é atigindo pelo azar , revolta-se de maneira mais ou menos impotente e sofre intensamente , ou se resigna , refugiando-se assim numa revolta muda , inativa , menos dolorosa e que se diluirá com o tempo .
No estado de sofrimento moral , o homem é invadido por uma quantidade variável de energia desarmônica que constitui um círculo vicioso imaginativo-emotivo . Esta energia encontra uma válvula de escape na imaginação , que reativa ao mesmo tempo a energia desarmônica que provém do centro afetivo . Essa energia só pode ser utilizada para a Realização se o círculo vicioso se romper no nível da imaginação , do mental , deixando assim de constituir uma massa energética formal , um corpo estranho que o organismo tem de rejeitar , pois a matéria-prima dessa energia bipolarizada é , na verdade , uma porção de energia vital , pessoal e homogênea , e própria do sujeito . Se concentro minha atenção naquilo que meu corpo sente sem pensar em nada , a energia do sofrimento perde a sua desarmonia , pára de me despedaçar entre dois pólos e fica à disposição do Ele , que se aproxima mais ou menos do despertar na medida em que diminui a pretensão divina do Eu .
Se soubermos utilizar asim nossos sofrimentos , a vaidosa pretensão do Eu diminui ; nosso estado interior desce em direção à nostalgia primitiva à qual aludia Rimbaud :
Oh mil viuvezas
Da tão pobre alma .
Além disso , passamos a querer cada vez mais frequentemente sentir no nosso corpo este mal-estar provocado pela impressão do desamparo divino . Em geral , o sistema compensatório disfarça esse mal-estar como se o mesmo se encontrasse na direção oposta . Mas um olhar lúcido e imparcial desmascara facilmente o precioso mal-estar ; precioso porque conduz gradualmente à nostalgia primitiva na qual o inferno , ao ser atingido , transforma-se repentinamente em paraíso . A via da Realeza Divina deve ser precedida pela ilusória evidência de sua ausência , e a via da verdadeira felicidade , infinita e eterna , deve passar pela perda total de toda esperança em si .
Para nós , todos os sentimentos são humilhações . A partir do momento em que são aceitas , transcendem em justa humildade , em visões do nosso Eu como sendo cada vez menos . Depois , no momento em que finalmente o vemos como se nada fosse , como não sendo , o Eu se realiza e nos invade completamente , revelando que , sem que tivéssemos consciência disso , que sempre O fomos no esplendor de sua Realidade Absoluta .
Texto : ( Livro . A Realização Interior Pags. 79 a 85 )
Hubert Benoit .
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