sexta-feira, 18 de junho de 2010

" As Injunções "

Em resumo , todas as formas válidas de conhecimento têm uma injunção , uma iluminação e uma confirmação ; e isso é verdade tanto se estamos olhando para as luas de Júpiter , para o teorema de Pitágoras , para o significado de Hamlet ou ... para a natureza do Absoluto .
E enquanto as luas de Júpiter podem ser desvendadas pelo olho da carne ( pelos sentidos ou suas extensões - sensibilia ) , e o teorema de Pitágoras pode ser desvendado pelo olho da mente e suas apreensões interiores ( intelligibilia ) , a natureza do absoluto só pode ser desvendada pelo olho da contemplação e seus referentes diretamente desvendados - sua trancendelia , seus dados espirituais , os fatos reais do universo espiritual .
Mas para ganhar acesso a qualquer um desses modos válidos de saber , devo estar adequado a injunção - devo completar com sucesso a etapa injuntiva . Isso é verdade nas ciências físicas , nas ciências mentais e nas ciências espirituais . Se queremos saber isso , devemos fazer isso . E se o exemplar nas ciências físicas é um telescópio , e nas ciências humanas uma interpretação linguística , nas ciências espirituais o exemplar , o paradigma , a pratica é : meditação ou contemplação . Elas também tem suas injunções , suas iluminações e suas confirmações , todas perfeitamente repetíveis , verificáveis ou refutáveis . - todas constituindo , portanto , um modo perfeitamente válido de aquisição de conhecimento .
Em todos os casos , porém , temos de usar a injunção . Temos de adotar a prática exemplaria , e isso certamente é verdade também para com as ciências espirituais . Se não adotarmos a prática injuntiva , não teremos um paradigma genuíno , e nunca vamos chegar a ver os dados do universo espiritual . Na verdade , não seremos diferentes dos sacerdotes que se recusaram a seguir a injunção de Galileu e dar uma espiada pelo telescópio .
E é aqui que começa o beco sem saída .

O Olho da Comtemplação

Nas páginas seguintes , vou apresentar meu argumento de que não se pode resolver o problema do absoluto/relativo utilizando o olho da carne , ou o olho da mente . Esse mais profundo de todos os problemas e mistérios submete sua resolução diretamente apenas ao olho da contemplação . E , como tanto Kant quanto Nagarjuna demonstraram com veemência , se tentarmos colocar essa solução em termos intelectuais ou racionais , vamos gerar apenas antinômios , paradoxos , contradição .
Em outras palavras , não se pode resolver o problema do absoluto/relativo empiricamente usando o olho da carne e sua sensibilia : nem se pode resolve-lo racionalmente , usando o olho da mente e sua inteligibilia . A solução , em vez disso , implica a apreensão direta da trancendelia , que é desvendada apenas pelo olho da contemplação , e é completamente verificável nessa esfera , usando o que na verdade , são procedimentos bastantes públicos - isto é , públicos para todos os que completaram a injunção e desvendaram a iluminação .
E o mesmo acontece , de novo , com o destino e o livre-arbítrio , o uno e o múltiplo , número e fenômeno , mente e cérebro . Eye to Eye argumenta que apenas nos estágios mais altos do desenvolvimento da consciência - parte essencial do desenvolvimento meditativo ou contemplativo - soluções para esses dilemas ficam òbvias . Mas isso é uma descoberta empírica , nem uma dedução racional ; é uma apreensão contemplativa .
As típicas respostas ocidentais à questão de qual é a relação entre mente e corpo - ou entre mente e cérebro - , incluem a tese da identidade ( são dois aspectos da mesma coisa ) , o dualismo ( são duas coisas diferentes ) , o interacionismo ( são diferentes mas mutuamente causais ) , o paralelismo ( duas coisas diferentes que nunca se comunicam ) , epifenomenalismo ( uma é subproduto da outra ) . E a despeito do que seus adeptos afirmam , nenhuma dessas posições conseguiu levar a melhor , simplesmente porque todas elas , todas , estão cheias de imperfeições de algum tipo .
A razão pela qual todas elas são inadequadas , segundo uma filosofia mais integral , seria que o problema mente/corpo não pode ser resolvido satisfatoriamente com o olho da carne nem com o olho da mente , já que esses são exatamente os dois modos que precisam ser integrados , algo que nenhuma delas poderia fazer por si mesma .
Desse modo , a única resposta aceitável à questão de qual é a relação entre a mente e o corpo é explicar com cuidado as injunções contemplativas em si - as práticas ou paradigmas ou exemplares contemplativos - e convidar os questionadores a experimentar a prática , e ver por si mesmos . Se você quer conhecer isto , precisa fazer isso . Ainda que nem o empirista nem o racionalista considerem essa resposta satisfatória - eles gostariam de usar somente seus próprios paradigmas e exemplares - ainda assim essa é a única resposta e o único curso de ação tecnicamente aceitáveis .
Tanto o racionalista quanto o empirista nos pressionam : eles querem que apresentemos nossas conclusões contemplativas e deixemos que eles a examinem contra suas próprias injunções . Isto é , eles querem nossas palavras despidas e divorciadas de suas próprias injunções reais e específicas . Eles querem tentar seguir nossas palavras sem a dor de seguir nossos exemplares . Assim , devemos lembra-los de que ; palavras sem injunções não tem sentido . Palavras sem injunções não tem nenhum meio de verificação . Palavras sem injunções são a substância da demagogia , do dogma e das fraudes . Nossas palavras e nossas conclusões realmente podem ser cuidadosamente justificadas - verificadas ou rejeitadas - , mas apenas se as injunções forem empregadas .
Desse modo , então , quando os empiristas e os racionalistas exigem nossas conclusões sem as injunções , é fatal que recebam uma resposta sem sentido - e eles nos culpam por essa falta de sentido ! Nossos dados não podem ser engendrados pelos seus paradigmas e exemplares particulares , e eles então ficam quebrando a cabeça . Eles não farão isso , e portanto não saberão isso . Ficam girando na órbita de sua cegueira auto-imposta , e chamam essa cegueira de realidade .
Texto : Ken Wilber
( do livro : Olho do Espírito - pag. 84 , 85 , 86 )
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segunda-feira, 14 de junho de 2010

" AUSÊNCIA DO EGO "

Justamente porque o ego , a alma e o Eu ( Self ) podem estar presentes ao mesmo tempo , não será difícil entender o sentido verdadeiro de " ausência do ego " - expressão que tem causado imensa confusão . Ausência do ego não significa a ausência de um eu ( self ) funcional ( o que seria próprio de um psicótico e não de um sábio ) ; significa que não estamos mais exclusivamente identificados com aquele eu .
Um dos muitos motivos de não sabermos lidar com a noção de " ausência do ego " é que desejamos que nossos " sábios sem ego " satisfaçam às nossas fantasias relativas a " santidade " ou " espiritualidade " , o que , habitualmente , significa que essas pessoas estejam mortas do pescoço para baixo , livres das vontades ou desejos da carne , eternamente sorridentes .
Desejamos que esses santos não passem por todas as coisas que nos incomodam - dinheiro , comida , sexo , relacionamentos , desejos . " Sábios sem ego " estão " acima de tudo isso " - assim desejamos . Queremos cabeças que falem . Acreditamos que a religião bastará para livrá-los de todos os instintos básicos , de todas as formas de relacionamento , considerando a religião , não como orientação para viver a vida com entusiasmo , mas , sim , como guia para evitá-la , reprimi-la , negá-la , fugir dela .
Em outras palavras , o homem típico espera que o sábio espiritual seja " menos que uma pessoa " , de alguma forma liberto dos impulsos confusos , difusos , complexos , pulsantes , compulsivos , que guiam a maior parte dos seres humanos . Esperamos que nossos sábios sejam a ausência de tudo o que nos impulsiona . Queremos que não sejam sequer tocados por todas as coisas que nos atemorizam , que nos confundem , que nos atormentam , que nos atordoam . É a essa ausência , a essa falta , a esse " menos que uma pessoa " que , frequentemente , chamamos " sem ego " .
Entretanto , " sem ego " não significa " menos que uma pessoa " ; significa " mais que uma pessoa " . Não pessoa menos , mas pessoa mais - isto é , todas as qualidades normais da pessoa mais algumas transpessoais . Pensemos nos grandes iogues , santos e sábios - de Moisés a Cristo , a Padmasambhava . Não foram desfibrados maneirosos , mas dinâmicos e instigantes - desde o episódio dos vendilhões do Templo até a imposição de novos rumos a nações inteiras .
Lidaram com o mundo em seus próprios termos , não em termos de uma piedade melosa ; muitos deles provocaram revoluções sociais significativas , que se estenderam por milhares de anos . E assim fizeram , não porque tivessem evitado as dimensões físicas , emocionais e mentais da humanidade , e o ego , que é o veículo de todas elas , mas porque as assumiram com tal garra e intensidade que sacudiram as próprias fundações do mundo . Indiscutivelmente , estavam também intimamente ligados com a alma ( o psiquismo profundo ) e o espírito ( o Eu informe ) - fonte última de sua força - mas expressaram essa força e tiraram dela resultados concretos , exatamente porque assumiram , decididamente , as dimensões menores através das quais ela poderia expressar-se de modo a ser sentida por todas as pessoas .
Esses grandes mobilizadores e agentes de mudança não foram egos pequenos ; foram , na mais completa acepção do termo , grandes egos , justamente porque o ego ( veículo funcional do domínio da mente ) pode existir e de fato existe com a alma ( veículo do sutil ) e o Eu ( veículo do causal ) . Na mesma medida em que esses grandes mestres mobilizaram o domínio da mente , eles mobilizaram o próprio ego , porque o ego é o veículo dess reino . Entretanto , não se identificavam meramente com seu ego ( isso seria narcisismo ) ; simplesmente perceberam seu ego conectado a uma fonte Kósmica radiante . Os grandes iogues , santos e sábios conseguiram tanto , exatamente porque não foram tímidos bajuladores , mas grandes egos ligados ao seu Eu superior , animados pelo puro Atman ( o puro Eu - eu ) que é um com Brahman ; abriram a boca e o mundo estremeceu , caiu de joelhos e pôde ver face a face o Deus radioso .
Santa Teresa não foi uma grande contemplativa ? Sim , e Santa Teresa foi a única mulher que reformou uma tradição monástica inteira ( pensemos nisso ) . Gautama Buda sacudiu a Índia nos seus fundamentos . Rumi , Plotino , Bodhidharma , Lady Tsogyal , Lao Tsé , Platão , o Baal Shem Tov - estes homens e mulheres deram início a revoluções no mundo que duraram centenas , às vezes milhares de anos - coisa que nem Marx , nem Lenin , nem Locke , nem Jefferson , poderiam afirmar ter conseguido . E não agiram assim porque estivessem mortos do pescoço para baixo . Não , eles eram fantasticamente , divinamente grandes egos , ligados profundamente ao psíquico , que estava diretamente ligado a Deus .
Existe certa verdade na noção do transcender o ego : não significa destruir o ego , mas sim , conectá-lo a alguma coisa maior . Como afirma Nagarjuna , no mundo relativo , atman é real ; no absoluto nem atman nem anatman são reais . Assim , em nenhum caso annatta corresponde a uma descrição correta da realidade . O pequeno ego não se evapora ; permanece como o centro funcional da atividade no domínio convencional . Como eu disse , perder esse ego significa tornar-se um psicótico , não um sábio .
" Transcender o ego " , significa , pois , em verdade , transcender mas incluir o ego num envolvimento mais profundo e mais elevado , primeiro na alma ou psiquismo mais profundo , depois na Testemunha ou Eu superior e , então , após a absorção nos níveis precedentes , envolver-se , incluir-se e abraçar-se na radiância do Um Sabor . E isto não significa , portanto , " livrar-se " do pequeno ego , mas , ao contrário , habitar nele plenamente , vivê-lo com entusiasmo , usá-lo como veículo necessário , através do qual as grandes verdades podem ser transmitidas . Alma e espírito incluem o corpo , as emoções e a mente ; não os eliminam .
Grosseiramente , podemos dizer que o ego não é uma obstrução ao Espírito , mas uma radiosa manifestação do Espírito . Todas as Formas não são senão o Vazio , inclusive a forma do próprio ego . Não é necessário livrar-se do ego , mas , simplesmente , vivê-lo com certa intensidade . Quando a identificação transborda do ego no Kosmos em geral , o ego descobre que o Atman individual é , de fato , da mesma espécie de Brahman . O Eu superior não é , em verdade , um pequeno ego , e , assim , no caso de estarmos presos ao nosso pequeno ego , a morte e a transcendência são necessárias . Os narcisistas são , simplesmente , pessoas cujos egos não são ainda suficientemente grandes para abraçar o Kosmos inteiro e , para compensar , tentam tornar-se o próprio centro do Kosmos .
Não queremos que nossos sábios tenham grandes egos ; sequer desejamos que exibam qualquer característica evidente . Sempre que um sábio se mostra humano - a respeito de dinheiro , comida , sexo , relacionamentos - sentimo-nos chocados , porque estamos planejando fugir inteiramente da vida e o sábio que vive a vida nos ofende . Queremos estar fora , queremos ascender , queremos escapar , e o sábio que assume a vida com prazer , vive-a totalmente , pega cada onda da vida e surfa nela até o fim - nos pertuba e nos assusta intensamente , profundamente , porque significa que nós , também , deveríamos assumir a vida com prazer , em todos os níveis , e não simplesmente fugir dela numa nuvem etérea , luminosa .
Não queremos que nossos sábios tenham corpo , ego , impulsos , vitalidade , sexo , dinheiro , relacionamentos ou vida , porque essas são coisas que habitualmente nos torturam e queremos vê-las longe de nós . Não queremos surfar as ondas da vida , queremos que as ondas desapareçam . Queremos uma espiritualidade feita de fumaça .
O sábio completo , o sábio não-dual está aqui para mostrar-nos o contrário . Geralmente conhecidos como " tântricos " , estes sábios insistem em transcender a vida , vivendo-a . Insistem em procurar libertação no envolvimento , encontrando o nirvana no meio do samsara , encontrando a libertação total pela completa imersão . Passam com consciência pelos nove círculos do inferno , certos de que em nenhum outro lugar encontrarão os nove círculos do céu .
Nada lhes é estranho porque nada existe que não seja Um Sabor .
Na verdade , o segredo consiste em estar inteiramente à vontade no corpo e com seus desejos , com a mente e suas idéias , com o espírito e sua luz . Assumi-los interiramente , plenamente , simultaneamente , uma vez que todos são igualmente manifestações do Um e Único Sabor .
Vivenciar a paixão e vê-la funcionar ; penetrar nas idéias e acompanhar seu brilho ; ser absorvido pelo Espírito e despertar para a glória que o tempo esqueceu de nomear . Corpo , mente e espírito , totalmente contidos , igualmente contidos , na consciência eterna que é a essência de todo o espetáculo .
Na quietude da noite , a Deusa sussura . Na luminosidade do dia , Deus amado brada . A vida pulsa , a mente imagina , as emoções ondulam , os pensamentos vagam . O que são todas estas coisas senão movimentos sem fim do Um Sabor , eternamente jogando com suas próprias manifestações , sussurando mansamente a quem quiser ouvir : isto é você mesmo ?
Quando o trovão ruge , você não ouve o seu Eu ? Quando irrompe o raio , você não vê o seu Eu ? Quando as nuvens deslizam mansamente no céu , não é o seu próprio Ser ilimitado que está acenando para você ?
Texto : Ken Wilber
( do Livro One Taste de Ken Wilber )
Tradução : Ari Raynsford .

quarta-feira, 9 de junho de 2010

UMA ESPIRITUALIDADE QUE TRANSFORMA !!!

Hal Blacker , editor consultivo de What is Enlightenment ? ( O que é Iluminação ? ) , descreveu o tema desta edição especial da revista do seguinte modo ( embora repita afirmações feitas em outras partes desta edição , vale a pena apresentar a citação completa simplesmente pela sua eloquência , fraqueza e indiscutível bom senso ) :
Tencionamos explorar uma questão sensível , mas que precisa ser tratada : a superficialidade que permeia a maior parte do discurso e da exploração espirituais atualmente no Ocidente , e , em particular , nos Estados Unidos . Frequentemente , ao traduzir-se doutrinas do Oriente ( e de outros lugares ) para o idioma americano , sua profundidade é aplainada , sua exigência radical é diluída e seu potencial para transformação revolucionária é abrandado . Uma vez que as palavras dos ensinamentos são quase sempre as mesmas , isto se dá de maneira sutil . Através de uma aparente prestidigitação envolvendo , talvez , seu contexto e , consequentemente , seu significado , a mensagem das maiores doutrinas , muitas vezes , parece transmutar-se do crepitar do fogo da libertação para algo que mais se assemelha ao borbulhar calmante de um banho quente de banheira . Embora haja exceções , as implicações radicais dos grandes ensinamentos são , desse modo , frequentemente perdidas . Desejamos investigar esta diluição da espiritualidade no Ocidente e analisar suas causas e consequências .
Baseado nesta declaração , gostaria de ressaltar seus pontos básicos e comentá-los da melhor maneira que puder , porque , considerados em conjunto , eles realçam o verdadeiro âmago da crise americana de espiritualidade .

Interpretação versus Transformação

Numa série de livros ( e .g . , Um Deus Social , Up from Eden e The Eye of Spirit ) tento mostrar que a religião sempre cumpriu duas funções muito importantes , mas muito diferentes . Em primeiro lugar , ela age de modo a criar significado para o ego alienado : oferece mitos , histórias , contos , narrativas , rituais e revivescências que , em conjunto , ajudam o ego a entender e suportar as pedras e flechas do destino implacável . Normamente , esta função da religião não necessariamente altera o nível de conciência da pessoa ; não provoca transformação radical . Nem provoca , tampouco , uma libertação definitiva do ego alienado . Ao contrário , ela consola o ego , fortalece o ego , defende o ego , promove o ego . À medida que o ego alienado acredita nos mitos , executa os rituais , balbucia as orações ou aceita os dogmas , então crê fervorosamente que será " salvo " - ainda nesta vida , pela glória da salvação de Deus ou da proteção da Deusa , ou na vida após a morte , quando ser-lhe-à assegurada felicidade eterna .
Mas , em segundo lugar , a religião cumpre - usualmente para uma muito , mas muito pequena minoria - uma função de transformação radical e de libertação . Esta função da religião não fortalece o ego alienado ; ao contrário , despedaça-o completamente - não consolação mas devastação , não entrincheiramento mas esvaziamento , não complacência mas explosão , não conforto mas revolução - em síntese , não fortalecimento convencional da consciência mas transmutação e transformação radicais nas profundezas da própria consciência .
Há algumas diferentes maneiras para explicar essas duas importantes funções da religião . A primeira função - criação de significado para o ego - é um tipo de movimento horizontal ; a segunda função - transcendência do ego - é um tipo de movimento vertical ( para cima ou para o fundo , dependendo da sua metáfora ) . Denominei a primeira interpretação ; a segunda , transformação .
A interpretação simplesmente dá ao ego uma nova maneira para pensar ou sentir a realidade . O ego passa a ter uma nova crença - talvez holística ao invés de atomística , talvez perdão no lugar de acusação , talvez relacional ao invés de analítica . Assim , o ego aprende a interpretar seu mundo e seu ser em termos desta nova crença , ou nova linguagem , ou novo paradigma , e esta nova e encantadora interpretação age , pelo menos temporariamente , para aliviar ou diminuir o terror inerente ao coração do ego alienado .
Mas com a transformação , o próprio processo de interpretação é desafiado , interpelado , minado e , finalmente , desmantelado . Com a interpretação , é dado ao ego ( ou sujeito ) um novo modo de pensar sobre o mundo ( ou objetos ) ; mas com a transformação radical , o próprio ego passa a interrogar-se , a olhar para dentro de si , a estrangular-se e , literalmente , a sufocar-se até a morte .
Colocado de uma última maneira : com a interpretação horizontal - que é de longe a dominante , a mais difundida e largamente compartilhada função da religião - o ego , pelo menos temporariamente , sente-se feliz com seu entendimento , contente com sua escravidão , complacente em face do terror gritante que é , de fato , sua condição mais íntima . Com a interpretação o ego torna-se sonolento no mundo , tropeça entorpecido e com a visão curta no pesadelo do samsara , recebe um mapa amarrado com um laço de morfina para encarar o mundo . E esta é , na verdade , a condição normal da humanidade religiosa , precisamente a condição a ser desafiada e , finalmente , desfeita pelos ativistas da transformação espiritual .
Porque a transformação autêntica não é uma questão de crença , e sim de morte do crente ; não uma questão de interpretar o mundo , mas sim de transformá-lo ; não uma questão de encontrar alívio , mas sim de encontrar o infinito no outro lado da morte . Não é dada importância ao ego ; ele é cremado .
Agora , embora obviamente eu venha favorecendo a transformação e minimizando a interpretação , o fato é que ambas as funções são incrivelmente importantes e inteiramente indispensáveis . A maioria das pessoas não nasce iluminada . Elas nascem em um mundo de pecado e sofrimento , esperança e medo , desejo e desespero . Nascem como um ego ávido e pronto para contrair-se ; um ego prenhe de fome , sede , lágrimas e terror . E , bem cedo , aprendem várias maneiras de interpretar seu mundo , de fazer com que passe a ter sentido , de dar-lhe um significado e de defender-se do terror e da tortura que nunca estão suficientemente distantes da superfície feliz do ego alienado .
E , apesar de nós , você e eu , podemos estar desejando transcender a simples interpretação e encontrar a transformação autêntica , a interpretação , por si só , é uma função absolutamente necessária e crucial na maior parte de nossas vidas . Aqueles que não conseguem interpretar adequadamente , com uma boa dose de integridade e precisão , caem rapidamente em sérias neuroses ou mesmo psicoses : o mundo pára de fazer sentido - os limites entre o ego e o mundo não são transcendidos ; ao contrário , começam a esfarelar-se . Não é uma descoberta importante ( " breakthrough " ) e sim um colapso ( " breakdown " ) ; não é transcendência , mas desastre .
Mas em algum ponto do nosso processo de amadurecimento , a própria interpretação , não importa quão adequada ou confiável , simplesmente cessa de consolar . Nenhuma nova crença , nenhum novo paradigma , nenhum novo mito , nenhuma nova idéia estancarão a angústia que se instala em nós . Aí , o único caminho que resta não é uma nova crença para o ego , mas sim a transcendência do próprio ego .
Mesmo assim , o número de pessoas que estão prontas para este novo caminho foi , é e sempre será muitíssimo pequeno . Para a grande maioria , algum tipo de crença religiosa aparecerá na qualidade de consolação : será uma nova interpretação horizontal que apresentará algum sentido para este mundo monstruoso . E , na maior parte do tempo , a religião tem sempre cumprido esta primeira função e se saído bem .
Assim , também uso palavra legitimidade para descrever esta primeira função ( a interpretação horizontal e a criação de significado para o ego alienado ) . E muito da importante missão da religião é dar legitimidade ao ego - legitimidade para suas crenças , seus paradigmas , suas visões de mundo , e seu caminho no mundo . Esta função da religião de prover legitimidade para o ego e suas crenças - não importa quão temporária , relativa , não-transformadora ou ilusória - tem sido , todavia , a principal e mais importante função das tradições religiosas de todo o mundo . A capacidade de a religião prover significado horizontal , ligitimidade e sanção para o ego e suas crenças - esta função da religião , historicamente , tem sido a maior " cola social " de qualquer cultura .
E não se mexe facilmente , ou suavemente , na cola básica que mantém juntas as sociedades . Porque , na maioria das vezes , quando essa cola se dissolve , o resultado , como já dissemos , não é uma descoberta importante , mas um colapso , não libertação , mas caos social . ( Voltaremos a este ponto crucial mais adiante . )
Enquanto a religião interpretativa oferece legitimidade , a religião transformadora oferece autenticidade . Para aquelas poucas pessoas que estão prontas - isto é , fartas do sofrimento do ego alienado e que não mais aceitam a visão do mundo legítima - então uma abertura transformadora para a verdadeira autenticidade , para a verdadeira iluminação , para a verdadeira libertação torna-se cada vez mais premente . E , dependendo da sua capacidade para sofrer , você , mais cedo ou mais tarde , responderá à chamada para a autenticidade , para a transformação , para a libertação no horizonte perdido do infinito .
A espiritualidade transformadora não procura dar suporte ou legitimar nenhuma visão de mundo atual ; ao contrário , ela provê a verdadeira autencidade estilhaçando aquilo que o mundo considera legítimo . A consciência legítima é sancionada pelo consenso , adotada pela mentalidade de rebanho , aceita tanto pela cultura como pela contracultura , promovida pelo ego alienado como o caminho para que este mundo tenha sentido . Mas a consciência autêntica sacode tudo isso de suas costas e , em substituição , fixa o olhar numa visão que vê somente um infinito radiante no coração de todas as almas e inspira em seus pulmões a atmosfera de uma eternidade muito simples de acreditar .
Assim , a espiritualidade transformadora , a espiritualidade autêntica é revolucionária . Ela não legitima o mundo ; ela rompe com ele . Não consola o mundo , ela o estilhaça . E não dá importância ao ego ; ela o desfaz .
E esses levam a diversas conclusões .

Quem Realmente Quer Transformar-se ?

Há uma crença muito difundida de que o Oriente está imerso em espiritualidade autêntica e transformadora , enquanto o Ocidente - historicamente e mesmo na " new age " atual - não apresenta nada além do que uma espiritualidade horizontal , interpretativa , meramente legítima e , portanto , morna . Ainda que haja alguma verdade nisso , a situação real é muito sombria , tanto para o Oriente quanto para o Ocidente .
Primeiro , embora seja verdade que o Oriente venha produzindo um maior número de iluminados autênticos , mesmo assim , a percentagem real da população oriental que está engajada em autêntica espiritualidade transformadora é , e sempre foi , extremamente pequena . Uma vez perguntei a Katigiri Roshi , com quem consegui minha primeira experiência de iluminação ( espero não ter sido um colapso ) , quantos grandes mestres Ch'an ( China ) e Zen ( Japão ) verdadeiramente existiram . Sem hesitar , ele respondeu " Talvez mil no total " . Perguntei a outro mestre Zen quantos mestres Zens verdadeiramente iluminados - profundamente iluminados - estão vivos hoje , e ele respondeu " Não mais do que uma dúzia . " Vamos considerar para efeito de argumentação que essas sejam respostas não muito precisas . Vejamos os números . Mesmo que considerássemos que só existiu um bilhão de chineses ao longo da história ( uma estimativa extremamente baixa ) , isto significa que apenas mil em um bilhão atigiram a espiritualidade autêntica , transformadora . Para aqueles sem uma calculadora , isto significa 0,000001 da população total . E isto quer dizer , com certeza , que o resto da população estava ( e está ) envolvido , na melhor das hipóteses , em vários tipos de religião legítima , horizontal , interpretativa : envolvido em práticas mágicas , crenças míticas , egóicas orações petitórias , rituais mágicos etc . - em outras palavras , caminhos interpretativos para dar sentido ao ego alienado , uma função interpretativa que , como dissemos , é , até hoje , a maior cola social da cultura chinesa ( e de todas as outras ) .
Então , sem querer de modo algum minimizar as excepcionalmente belas contribuições das gloriosas tradições orientais , a conclusão é simples e direta : a espiritualidade transformadora radical é extremamente rara , em qualquer tempo da história , em qualquer lugar do mundo . ( Os números para o Ocidente são ainda mais deprimentes . Encerro meu caso . )
Assim , embora possamos lamentar o pequeno número de pessoas no Ocidente que estão envolvidas , hoje , num processo espiritual de transformação radical , não façamos uso do falso argumento que tenha sido dramaticamente diferente no passado ou em outras culturas . Ocasionalmente , pode ter sido um pouco melhor do que hoje no Ocidente , mas a realidade persiste : a espiritualidade autêntica é um pássaro incrivelmente raro em qualquer lugar , a qualquer tempo . Então , vamos partir do fato indiscutível que a espiritualidade autêntica , vertical , transformadora é uma das mais preciosas jóias de toda a tradição humana - exatamente porque , como todas as jóias preciosas , é incrívelmente rara .
Segundo , mesmo que você e eu acreditemos profundamente que a mais importante função que podemos exercer é oferecer espiritualidade transformadora autêntica , o fato é que o melhor que podemos fazer em nossa capacidade de trazer espiritualidade decente para o mundo é oferecer mais modos de interpretação úteis e benignos . Em outras palavras , mesmo que estejamos praticando , ou oferecendo , espiritualidade transformadora autêntica , de qualquer modo , muito do que devemos primeiramente fazer é prover para a maioria das pessoas um meio mais adequado para interpretar sua condição . Devemos começar com interpretações úteis antes que , efetivamente , possamos oferecer transformações autênticas .
A razão para isso é que se tirarmos do indivíduo ( ou da cultura ) muito rapidamente , muito abruptamente ou de maneira inepta a interpretação , o resultado , mais uma vez , não será conquista mas derrota , não libertação mas colapso . Deixe-me dar dois rápidos exemplos .
Quando Chogyam Trungpa Rinpoche , um importante ( embora polêmico ) mestre tibetano veio pela primeira vez a este país , ele ficou conhecido por sempre repetir , quando perguntado sobre o significado de Vajrayana , " Há somente Ati " . Em outras palavras , há somente a mente iluminada , não importa para onde você olhe . Ego , samsara , maya e ilusão - não temos que livrar de nenhum deles , porque , em realidade , não existem : há somente Ati , há somente Espírito , há somente Deus , há somente Consciência não-dual em qualquer parte da existência .
Virtualmente ninguém entendeu - ninguém estava pronto para essa compreensão radical e autêntica , embora verdadeira - e , assim , Trungpa finalmente introduziu toda uma série de práticas " menores " que levavam a esta radical e definitiva " não-prática " . Ele apresentou as Nove Yanas como a base da prática - isso é , apresentou nove estágios ou níveis de prática , culminando no último - " não-prática " - do eterno-agora Ati .
Muitas dessas práticas eram simplesmente interpretativas e algumas , poderíamos dizer , " menos transformadoras " : transformações em miniatura que tornam a mente-corpo mais suscetível a atingir a completa iluminação radical . Essas práticas interpretativas e menos transformadoras levavam à " prática perfeita " da não-prática - ou à compreensão radical , instantânea e autêntica que desde o início só existe Ati . Assim , embora a transformação última fosse o objetivo primordial e sempre presente , Trungpa teve de introduzir práticas interpretativas e menores a fim de preparar as pessoas para a obviedade do que é .
Exatamente o mesmo aconteceu com Adi Da , outro influente ( e igualmente polêmico ) mestre ( embora , desta vez , americano ) . Inicialmente , ele só ensinava " o caminho da compreensão " : não um modo de chegar à iluminação , mas um questionamento de por que você quer chegar à iluminação , em primeiro lugar . O próprio desejo de procurar a iluminação nada mais é do que a tendência ambiciosa do ego em si e , assim , a simples procura pela iluminação evita que ela aconteça .
Portanto , a " prática perfeita " não é procurar atingir a iluminação , mas sim questionar o motivo da procura . Você obviamente a procura para para evitar o presente e , no entanto , somente o presente possui a resposta : procurá-la para sempre é errar o alvo para sempre . Você já é , desde sempre , Espírito iluminado e , portanto , buscar o Espírito é simplesmente negar o Espírito . Você não pode alcançar o Espírito do mesmo modo que não pode ganhar seus pés ou adquirir seus pulmões .
Ninguém entendeu . Assim , Adi Da , exatamente como Trungpa , apresentou uma série completa de práticas interpretativas e menos transformadoras - de fato , sete estágios - levando ao ponto em que se podia abandonar a procura e abrir-se para a eterna-agora verdade da sua própria condição eterna e atemporal , que estava completa e totalmente presente desde o início , mas que era brutalmente ignorada devido ao enlouquecido desejo da busca .
Agora , qualquer que seja sua opinião sobre esses dois mestres , a realidade é a seguinte : eles realizaram talvez os dois primeiros grandes experimentos neste país de como apresentar a noção de " Há somente Ati " . - há somente Espírito - e , então , concluir que a busca do Espírito é exatamente o que não permite a sua realização . E ambos descobriram que , por mais que estejamos ligados a Ati , ligados à verdade transformadora radical deste momento , práticas interpretativas e práticas transformadoras menores são quase sempre pré-requisitos para esta última e derradeira transformação .
Meu segundo ponto , então , é que , além de oferecer transformação autêntica e radical , devemos ser sensíveis , e cuidadosos , a numerosos modos benéficos de práticas interpretativas e transformadoras menores . Portanto , esta postura mais generosa pede uma " abordagem integral " para a completa transformação , uma abordagem que aceite e incorpore muitas práticas interpretativas e menos transformadoras - cobrindo os aspectos físico , emocional , mental , cultural e comunitário do ser humano - como preparação e como expressão da suprema transformação no estado do eterno-agora .
E assim , no mesmo momento em que criticamos a religião meramente interpretativa ( e todos os estados menores de transformação ) , devemos entender que uma abordagem integral para a espiritualidade combina o melhor do horizontal e do vertical , interpretativo e transformador , legítimo e autêntico - e , então , concentrar nossos esforços numa visão global sã e equilibrada da condição humana .

Sabedoria e Compaixão

Mas esta minha visão não é terrivelmente elitista ? Santo Deus , espero que sim ! Quando vai a um jogo de basquete , você quer ver Michael Jordan ou eu ? Quando está interessado em música popular , quem pagaria para ouvir ? Eu o Bruce Springsteen ? Quando quer boa literatura , quem preferiria passar a noite lendo ? Eu ou Tolstoi ? Quando você paga sessenta e quatro milhões de dólares por um quadro , será uma pintura minha ou de Van Gogh ?
Toda excelância é elitista . E isto inclui também a excelência espiritual . Mas a excelência espiritual é um elitismo para o qual todos estão convidados . Vamos primeiro aos grandes mestres - Padmasambhava , santa Teresa de Àvila , Buda Gautama , Lady Tsogyal , Emerson , Eckhart , Maimônides , Shankara , Sri Ramana Maharshi , Bodhidarma , Garab Dorje . Sua mensagem é sempre a mesma : que esta consciência que está em mim esteja em você . Você sempre começa elitista ; você sempre termina igualitário .
Mas , em algum ponto do caminho , há a furiosa sabedoria que grita do fundo do coração : devemos , todos nós , prestar atenção ao radical e supremo objetivo transformador . Assim , qualquer tipo de espiritualidade autêntica ou integral também envolverá sempre um grito crítico , intenso e ocasionalmente polêmico do campo transformador para o campo meramente interpretativo.
Se usarmos as percentagens do Ch'an chinês como exemplo genérico , isso significa que se 0,000001 da população está realmente envolvida em espiritualidade autêntica ou genuína então , 0,999999 da população está envolvida em sistemas de crenças horizontais não-transformadores , inautênticos , meramente interpretativos . E isto significa , sim , que a grande maioria dos " buscadores espirituais " deste país ( como de qualquer outro ) está envolvida em algo muito menor que acontecimentos autênticos . Sempre foi assim e ainda o é hoje . Este país não é exceção .
Mas na América atual isto é muito mais preocupante , porque a grande maioria dos adeptos da espiritualidade horizontal frequentemente afirma estar representando a vanguarda da transformação espiritual , o " novo paradigma " que transformará o mundo , a " grande transformação " da qual são os líderes . E , na maioria das vezes , eles absolutamente não são profundos transformadores ; são meros , mas agressivos , interpretativos - não oferecem meios efetivos para desmontar completamente o ego , mas simples caminhos para que o ego pense de maneira diferente . Não modos de transformação , mas simplesmente novos modos de interpretação . Em realidade , o que a maioria oferece não é uma prática ou uma série de práticas ; não é sadhana , ou satsang , ou shikan-taza , ou ioga . O que a maioria oferece é simplesmente a sugestão : leia meu livro sobre o novo paradigma . Isto é profudamente pertubador e profudamente preocupante .
Os buscadores espirituais autênticos dedicam-se de corpo e alma às grandes tradições transformadoras ; mesmo assim , deverão sempre fazer duas coisas ao mesmo tempo : analisar e engajar-se em práticas interpretativas e menores ( das quais , normamente , depende seu sucesso ) , mas também dar um tonitruante grito do coração de que somente a interpretação não é sufiente .
Assim , todos aqueles que tiveram suas almas sacudidas pela transformação autêntica , acredito , devem lutar com a profunda obrigação moral e gritar do fundo do coração - talvez mansa e gentilmente , com lágrimas de relutância ; talvez com agressiva paixão e furiosa sabedoria ; talvez com lenta e cuidadosa análise ; talvez com inquebrantável exemplo público - pois a autenticidade sempre , e absolutamente , carrega uma exigência e um dever : você deve falar claramente , com o melhor do seu talento , sacudir a árvore espiritual e jogar seus faróis nos olhos dos complacentes .
Você deve deixar o entendimento radical vibrar em suas veias e sacudir os que estão a sua volta .
Ah ! Se você não age , está traindo sua própria autenticidade . Está escondendo seu verdadeiro tesouro . Você não quer aborrecer os outros porque não quer aborrecer-se . Você está agindo de má-fé , o sabor de um infinito ruim .
Porque , entenda , o fato alarmante é que qualquer entendimento profundo carrega uma terrível responsabilidade : aqueles a quem é permitido ver , simultaneamente estão encilhados no dever de comunicar a visão em termos bem claros ; esta é a troca . Foi-lhe permitido ver a verdade com a condição que você a comunicaria a outros ( este é o sentido último do voto do bodhisattva ) . E , portanto , se você viu , deve falar . Fale com compaixão , fale com furiosa sabedoria , ou fale habilmente , mas fale .
E esta é , verdadeiramente , uma carga terrível , uma carga horrível , porque em nenhuma situação há lugar para timidez . O fato de que você possa estar errado não é desculpa ; você pode estar certo em sua comunicação , ou pode estar errado , mas isto não importa . O que importa , como nos lembrou secamente Kierkegaard , é que somente investindo e relatando sua visão com paixão , a verdade pode penetrar , de uma maneira ou de outra , na relutância do mundo . Se você está certo ou errado , somente sua paixão forçará a descoberta . É seu dever promover esta descoberta e , portanto , é seu dever disseminar sua verdade com toda paixão e coragem que puder encontrar em seu coração .
Você deve gritar como puder .
O mundo comum já está gritando , e com tal ira roufenha que as verdadeiras vozes mal podem ser ouvidas . O mundo materialista já está cheio de publicidade e fascinação , gritos de atração e brados de comércio , acenos de saudação e convites para achegar-se . Não quero ser duro aqui pois devemos honrar nossos engajamentos menores . Entretanto você deve ter notado que a palavra " alma " é agora o item mais quente nos títulos de livros à venda , mas na maioria desses livros " alma " realmente significa ego arrastado . " Alma " vem denotando , neste frenesi alimentador de entendimento interpretativo , não o antemporal em você mas sim aquilo que se agita mais intensamente ao longo do tempo , e , assim , " cuidado com a alma " significa , incompreensivelmente , focar-se intensamente em seu ardende ego alienado . Do mesmo modo , " espiritual " está na boca de todo mundo , mas normalmente o que realmente significa é qualquer intenso sentimento egóico , assim como " coração " passou a significar qualquer sentimento sincero do ego .
Em verdade , tudo isso é simplesmente o mesmo antigo jogo interpretativo , de roupa nova , indo à cidade . E , mesmo assim , poderia ser aceitável se não fosse pelo fato alarmante de que esta manobra interpretativa é agressivamente denominada " transformação " , quando , obviamente , nada mais é que uma nova série de ariscas interpretações . Em outras palavras , infelizmente parece estar ocorrendo uma profunda hipocrisia oculta no jogo que considera qualquer nova interpretação como sendo uma grande transformação . E o mundo em geral , Leste ou Oeste , Norte ou Sul , está , como sempre esteve , na maioria das vezes , completamente surdo a esta calamidade .
Assim , em função da medida de sua realização autêntica , você está realmente pensando em sussurrar gentilmente no ouvido deste mundo quase surdo ? Não , meu amigo , você tem que gritar .
Gritar do fundo do coração o que você viu , gritar o mais que puder .
Mas não indiscriminalmente . Prossigamos cuidadosamente com o grito transformador . Que pequenos grupos de espiritualidade transformadora radical foquem seus esforços e transformem seus estudantes . E que esses grupos lentamente , cuidadosamente , responsavelmente , humildemente comecem a irradiar sua influência , adotando uma tolerância absoluta com todas as visões , mas tentando , todavia , defender uma espiritualidade verdadeira , autêntica e integral - pelo exemplo , por irradiação , por divulgação óbvia , por libertação inequívoca . Que esses grupos de transformação gentilmente convençam o mundo e seus relutantes egos , desafiem sua legitimidade , desafiem suas interpretações limitadoras e ofereçam um despertar que se contraponha ao entorpecimento que assombra o mundo em geral .
Comecemos aqui e agora - você e eu - o nosso compromisso de respirar ao infinito até que apenas o infinito seja o único estado que o mundo reconhecerá . Deixemos que a realização radical brilhe em nossas faces , ruja em nossos corações e troveje em nossos cérebros - o simples fato , o fato óbvio : você , no imediatismo da sua consciência presente , é na realidade , o mundo inteiro , em toda sua paixão e sua indiferença , em toda sua glória e sua graça , em todas suas vitórias e suas lágrimas .
Você não vê o sol , você é o sol ; você não ouve a chuva , você é a chuva ; você não sente a terra , você é a terra . E nesta simples , clara , inequívoca consideração , a interpretação cessará em todos os domínios , você transformar-se-á no próprio Coração do Kosmos e aí , exatamente aí , muito simplesmente , muito tranquilamente , tudo será desfeito . Então , maravilha e remorso serão estranhos a você , você e os outros ser-lhe-ão estranhos , fora e dentro não terão o menor sentido . E num óbvio choque de reconhecimento - onde meu Mestre é meu EU , o EU é o Kosmos e o Kosmos é minha Alma - você andará muito suavemente na bruma deste mundo e o transformará inteiramente não fazendo absolutamente nada .
E então , e então , e somente então , você - finalmente , claramente , cuidadosamente e com compaixão - escreverá na lápide de um ego que nunca existiu : Há somente Ati .
Texto : Ken Wilber
( Tradução Ari Raynsford )
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