segunda-feira, 14 de junho de 2010

" AUSÊNCIA DO EGO "

Justamente porque o ego , a alma e o Eu ( Self ) podem estar presentes ao mesmo tempo , não será difícil entender o sentido verdadeiro de " ausência do ego " - expressão que tem causado imensa confusão . Ausência do ego não significa a ausência de um eu ( self ) funcional ( o que seria próprio de um psicótico e não de um sábio ) ; significa que não estamos mais exclusivamente identificados com aquele eu .
Um dos muitos motivos de não sabermos lidar com a noção de " ausência do ego " é que desejamos que nossos " sábios sem ego " satisfaçam às nossas fantasias relativas a " santidade " ou " espiritualidade " , o que , habitualmente , significa que essas pessoas estejam mortas do pescoço para baixo , livres das vontades ou desejos da carne , eternamente sorridentes .
Desejamos que esses santos não passem por todas as coisas que nos incomodam - dinheiro , comida , sexo , relacionamentos , desejos . " Sábios sem ego " estão " acima de tudo isso " - assim desejamos . Queremos cabeças que falem . Acreditamos que a religião bastará para livrá-los de todos os instintos básicos , de todas as formas de relacionamento , considerando a religião , não como orientação para viver a vida com entusiasmo , mas , sim , como guia para evitá-la , reprimi-la , negá-la , fugir dela .
Em outras palavras , o homem típico espera que o sábio espiritual seja " menos que uma pessoa " , de alguma forma liberto dos impulsos confusos , difusos , complexos , pulsantes , compulsivos , que guiam a maior parte dos seres humanos . Esperamos que nossos sábios sejam a ausência de tudo o que nos impulsiona . Queremos que não sejam sequer tocados por todas as coisas que nos atemorizam , que nos confundem , que nos atormentam , que nos atordoam . É a essa ausência , a essa falta , a esse " menos que uma pessoa " que , frequentemente , chamamos " sem ego " .
Entretanto , " sem ego " não significa " menos que uma pessoa " ; significa " mais que uma pessoa " . Não pessoa menos , mas pessoa mais - isto é , todas as qualidades normais da pessoa mais algumas transpessoais . Pensemos nos grandes iogues , santos e sábios - de Moisés a Cristo , a Padmasambhava . Não foram desfibrados maneirosos , mas dinâmicos e instigantes - desde o episódio dos vendilhões do Templo até a imposição de novos rumos a nações inteiras .
Lidaram com o mundo em seus próprios termos , não em termos de uma piedade melosa ; muitos deles provocaram revoluções sociais significativas , que se estenderam por milhares de anos . E assim fizeram , não porque tivessem evitado as dimensões físicas , emocionais e mentais da humanidade , e o ego , que é o veículo de todas elas , mas porque as assumiram com tal garra e intensidade que sacudiram as próprias fundações do mundo . Indiscutivelmente , estavam também intimamente ligados com a alma ( o psiquismo profundo ) e o espírito ( o Eu informe ) - fonte última de sua força - mas expressaram essa força e tiraram dela resultados concretos , exatamente porque assumiram , decididamente , as dimensões menores através das quais ela poderia expressar-se de modo a ser sentida por todas as pessoas .
Esses grandes mobilizadores e agentes de mudança não foram egos pequenos ; foram , na mais completa acepção do termo , grandes egos , justamente porque o ego ( veículo funcional do domínio da mente ) pode existir e de fato existe com a alma ( veículo do sutil ) e o Eu ( veículo do causal ) . Na mesma medida em que esses grandes mestres mobilizaram o domínio da mente , eles mobilizaram o próprio ego , porque o ego é o veículo dess reino . Entretanto , não se identificavam meramente com seu ego ( isso seria narcisismo ) ; simplesmente perceberam seu ego conectado a uma fonte Kósmica radiante . Os grandes iogues , santos e sábios conseguiram tanto , exatamente porque não foram tímidos bajuladores , mas grandes egos ligados ao seu Eu superior , animados pelo puro Atman ( o puro Eu - eu ) que é um com Brahman ; abriram a boca e o mundo estremeceu , caiu de joelhos e pôde ver face a face o Deus radioso .
Santa Teresa não foi uma grande contemplativa ? Sim , e Santa Teresa foi a única mulher que reformou uma tradição monástica inteira ( pensemos nisso ) . Gautama Buda sacudiu a Índia nos seus fundamentos . Rumi , Plotino , Bodhidharma , Lady Tsogyal , Lao Tsé , Platão , o Baal Shem Tov - estes homens e mulheres deram início a revoluções no mundo que duraram centenas , às vezes milhares de anos - coisa que nem Marx , nem Lenin , nem Locke , nem Jefferson , poderiam afirmar ter conseguido . E não agiram assim porque estivessem mortos do pescoço para baixo . Não , eles eram fantasticamente , divinamente grandes egos , ligados profundamente ao psíquico , que estava diretamente ligado a Deus .
Existe certa verdade na noção do transcender o ego : não significa destruir o ego , mas sim , conectá-lo a alguma coisa maior . Como afirma Nagarjuna , no mundo relativo , atman é real ; no absoluto nem atman nem anatman são reais . Assim , em nenhum caso annatta corresponde a uma descrição correta da realidade . O pequeno ego não se evapora ; permanece como o centro funcional da atividade no domínio convencional . Como eu disse , perder esse ego significa tornar-se um psicótico , não um sábio .
" Transcender o ego " , significa , pois , em verdade , transcender mas incluir o ego num envolvimento mais profundo e mais elevado , primeiro na alma ou psiquismo mais profundo , depois na Testemunha ou Eu superior e , então , após a absorção nos níveis precedentes , envolver-se , incluir-se e abraçar-se na radiância do Um Sabor . E isto não significa , portanto , " livrar-se " do pequeno ego , mas , ao contrário , habitar nele plenamente , vivê-lo com entusiasmo , usá-lo como veículo necessário , através do qual as grandes verdades podem ser transmitidas . Alma e espírito incluem o corpo , as emoções e a mente ; não os eliminam .
Grosseiramente , podemos dizer que o ego não é uma obstrução ao Espírito , mas uma radiosa manifestação do Espírito . Todas as Formas não são senão o Vazio , inclusive a forma do próprio ego . Não é necessário livrar-se do ego , mas , simplesmente , vivê-lo com certa intensidade . Quando a identificação transborda do ego no Kosmos em geral , o ego descobre que o Atman individual é , de fato , da mesma espécie de Brahman . O Eu superior não é , em verdade , um pequeno ego , e , assim , no caso de estarmos presos ao nosso pequeno ego , a morte e a transcendência são necessárias . Os narcisistas são , simplesmente , pessoas cujos egos não são ainda suficientemente grandes para abraçar o Kosmos inteiro e , para compensar , tentam tornar-se o próprio centro do Kosmos .
Não queremos que nossos sábios tenham grandes egos ; sequer desejamos que exibam qualquer característica evidente . Sempre que um sábio se mostra humano - a respeito de dinheiro , comida , sexo , relacionamentos - sentimo-nos chocados , porque estamos planejando fugir inteiramente da vida e o sábio que vive a vida nos ofende . Queremos estar fora , queremos ascender , queremos escapar , e o sábio que assume a vida com prazer , vive-a totalmente , pega cada onda da vida e surfa nela até o fim - nos pertuba e nos assusta intensamente , profundamente , porque significa que nós , também , deveríamos assumir a vida com prazer , em todos os níveis , e não simplesmente fugir dela numa nuvem etérea , luminosa .
Não queremos que nossos sábios tenham corpo , ego , impulsos , vitalidade , sexo , dinheiro , relacionamentos ou vida , porque essas são coisas que habitualmente nos torturam e queremos vê-las longe de nós . Não queremos surfar as ondas da vida , queremos que as ondas desapareçam . Queremos uma espiritualidade feita de fumaça .
O sábio completo , o sábio não-dual está aqui para mostrar-nos o contrário . Geralmente conhecidos como " tântricos " , estes sábios insistem em transcender a vida , vivendo-a . Insistem em procurar libertação no envolvimento , encontrando o nirvana no meio do samsara , encontrando a libertação total pela completa imersão . Passam com consciência pelos nove círculos do inferno , certos de que em nenhum outro lugar encontrarão os nove círculos do céu .
Nada lhes é estranho porque nada existe que não seja Um Sabor .
Na verdade , o segredo consiste em estar inteiramente à vontade no corpo e com seus desejos , com a mente e suas idéias , com o espírito e sua luz . Assumi-los interiramente , plenamente , simultaneamente , uma vez que todos são igualmente manifestações do Um e Único Sabor .
Vivenciar a paixão e vê-la funcionar ; penetrar nas idéias e acompanhar seu brilho ; ser absorvido pelo Espírito e despertar para a glória que o tempo esqueceu de nomear . Corpo , mente e espírito , totalmente contidos , igualmente contidos , na consciência eterna que é a essência de todo o espetáculo .
Na quietude da noite , a Deusa sussura . Na luminosidade do dia , Deus amado brada . A vida pulsa , a mente imagina , as emoções ondulam , os pensamentos vagam . O que são todas estas coisas senão movimentos sem fim do Um Sabor , eternamente jogando com suas próprias manifestações , sussurando mansamente a quem quiser ouvir : isto é você mesmo ?
Quando o trovão ruge , você não ouve o seu Eu ? Quando irrompe o raio , você não vê o seu Eu ? Quando as nuvens deslizam mansamente no céu , não é o seu próprio Ser ilimitado que está acenando para você ?
Texto : Ken Wilber
( do Livro One Taste de Ken Wilber )
Tradução : Ari Raynsford .

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