sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

" Primado de Pedro "

É verdade que Jesus conferiu ao apóstolo Pedro o poder de chefe hierárquico da sua igreja ?
- É o que afirma a teologia romana . Entretanto , convém não esquecer que essa teologia , desde o tempo de Constantino Magno , início do quarto século , está inteiramente a serviço duma organização eclesiástica , e não , precipuamente , a serviço da verdade espiritual . O interesse máximo do clero romano é manter o prestígio da sua classe , e por isto todos os textos básicos do Evangelho - primazia hierárquica , confissão , eucaristia - são invariavelmente explicados de modo que redundem na consolidação da hierarquia . Jesus , porém , nunca teve o menor interesse em organização eclesiástica ; limitou-se a proclamar o reino de Deus , que , como ele dizia , " não vem com observâncias ( externas ) , nem se pode dizer dele : ei-lo aqui ! ei-lo acolá , porque o reino de Deus está dentro de vós " . Qualquer organização eclesiástica tem que ver com " observâncias " , e pode ser apontada a dedo como sendo esta ou aquela - " ei-la aqui ! ei-la acolá " Mas , o divino Mestre nega peremptoriamente que ele veio fundar uma sociedade visível , jurídica , hierárquica ; o que ele , por vezes , chama " igreja " , e sempre " reino de Deus " , é uma experiência puramente interna , que , naturalmente , se revela , também visivelmente , na vida humana ; é a mística que se manifesta em ética . É um erro fundamental , uma falsa premissa , atribuir a Jesus a intenção de fundar uma igreja , no sentido atual do termo . A própria palavra grega ekklesia , em latim ecclésia , significa " elite " , " grupo seleto " ( de ekkaléo , evocar , selecionar ) . Raríssimas vezes ocorre esta palavra no Evangelho ; o termo comum , em todas as parábolas , é " reino de Deus " , " reino dos céus " .
Entender com isto uma sociedade eclesiástica , juridicamente constituída , com um chefe humano e muitos auxiliares por ele nomeados ditatoriamente , é adulterar fundamentalmente a idéia de Jesus , projetando para dentro dele os nossos desejos de organização .
Um gênio cósmico como o Nazareno não pensa em organização burocrática ; tem plena confiança na imortalidade da verdade ; não faz depender o triunfo da verdade das escoras e muletas desta ou daquela organização ; isto pode ser , quando muito , dos talentos humanos , mas nunca do gênio divino . Atribuir a Jesus a fundação de uma igreja no sentido de hoje , é degradá-lo a um hábil codificador de estatutos e preceitos jurídicos . Um espírito como o de Jesus confia unicamente no poder do espírito : " Eu vos enviarei o espírito da verdade , e ele vos lembrará tudo que vos tenho dito e vos introduzirá em toda a verdade - e eis que eu mesmo estou convosco todos os dias até a consumação dos séculos ! " Aí está a constituição da igreja , que tem por garantia a presença perene do próprio Cristo e por fundamento a verdade mantida pelo espírito santo .
Infelizmente , onde principia o interesse duma determinada classe , desejosa de dominar , aí começa a adulteração da verdade do Evangelho .
O próprio Pedro , que teria sido nomeado primeiro chefe dessa suposta igreja , nunca chegou , a saber , desse fato . Temos dele duas cartas do Novo Testamento ; em nenhuma delas faz ele a mais ligeira alusão ao fato de ele ser chefe da Igreja ; não dá ordens a ninguém ; não exige obediência da parte dos súditos ; não se arvora em autoridade infalível ; em Antioquia , reconhece que errou num ponto fundamental ( " aberrou da verdade do Evangelho " , diz Paulo ) , aceitando repreensão pública da parte de um dos seus supostos súditos ; no primeiro Concílio Apostólico , de Jerusalém , é Tiago , o bispo local , que preside o conclave e dá a decisão final das resoluções . É evidente que Pedro ignorava completamente o que os nossos teólogos julgam saber a primazia dele .
Da mesma forma , Paulo , a maior figura espiritual do Cristianismo Primitivo , nada sabe dessa suposta primazia de Pedro . Repreende-o severamente , em Antioquia , por ter " aberrado da verdade do Evangelho " ; não julga necessário receber ordens dele para evangelizar o mundo pagão , porque teve ordem direta do Cristo . Quando , em 58 , Paulo escreve a sua famosa epístola aos cristãos de Roma e manda saudações a dezenas de discípulos de Cristo na capital do império , nenhuma menção é feita de Pedro , que segundo afirmam os nossos teólogos , teria sido o primeiro papa . Por que Paulo não o menciona nem lhe manda saudações , em sua carta ? Simplesmente porque Pedro não era conhecido dos cristãos de Roma ; a igreja romana fora fundada por um daqueles discípulos de Jesus que , segundo os Atos dos Apóstolos , estavam presentes ao primeiro Pentecostes . Ninguém conhecia Pedro , nem sabia da sua suposta primazia ; do contrário , não teria Paulo mandado aos cristãos romanos o seu grande tratado cristológico , chamado " Epístola aos Romanos " , bastava dizer aos cristãos em Roma : Perguntai ao vosso chefe espiritual , Pedro , que foi nomeado por Jesus guia supremo e infalível da sua igreja !
Nada disto fez Paulo , porque Pedro não era conhecido em Roma , e ninguém sabia de primazia nem infalibilidade . Essas supostas prerrogativas , repetimos , não vêm de Jesus , mas dos teólogos , porque elas estão a serviço da hierarquia , e não a serviço da espiritualidade .
Entre 60 e 62 esteve Paulo preso em Roma , podendo receber visitas , e , de fato , como ele menciona em diversas cartas , recebeu visitas de numerosos cristãos , tanto da capital como de diversas províncias do império romano - nunca recebeu visita de Pedro ! Por que não ? Simplesmente , porque Pedro não estava em Roma .
No ano 64 rompeu a primeira perseguição violenta aos cristãos . Foram trucidados quase todos os discípulos de Cristo que se encontravam em Roma - Pedro não morreu , porque não estava em Roma . Se fora conhecido como chefe local dos cristãos , não teria morrido em primeiro lugar ?
No verão de 67 , Pedro e Paulo , vindos do Oriente próximo , visitam os cristãos perseguidos em Roma - e ambos são presos e condenados à morte .
Dos supostos 25 anos que Pedro teria sido bispo de Roma , como a teologia inventou , sobra , quando muito , num total de 3 a 4 meses de permanência dele na metrópole do império . Juntamente com Paulo , deve ter chegado em princípios do verão de 67 , sendo martirizado pelo fim do mesmo verão - é esta a única possibilidade historicamente provável . Todo o resto é invenção . Pedro não fundou a igreja em Roma . Não foi primeiro bispo dessa igreja . Não foi nomeado chefe da igreja .
A doutrina teológica sobre a primazia de Pedro nasceu nos primórdios do século IV , no tempo de Constantino Magno , quando se iniciou a formação da hierarquia eclesiástica . Ainda no século V , como atesta Santo Agostinho , era ainda predominante entre os teólogos a opinião que as palavras de Jesus : " Tu és Pedro , e sobre esta pedra edificarei a minha igreja " , não se referiam à pessoa do ex-pescador Galileu , mas sim à revelação que Deus acabava de fazer a Pedro , quando este disse : " Tu és o Cristo , o Filho de Deus vivo " . A pedra , ou rocha , da igreja , como atesta Santo Agostinho , portavoz da opinião geral da época , era a revelação da divindade de Cristo , e não a pessoa de Pedro , que Jesus chama " carne e sangue " , e , pouco depois , " Satanás " . Como pessoa humana pode Pedro ter sucessores históricos , mas o privilégio da " pedra " não é transmitido por Pedro , mas é uma graça de Deus , que pode ser dada a qualquer pessoa que faça a mesma profissão da fé na divindade de Cristo .
Quando o poder civil do império romano , após a derrota do imperador de Bizâncio , Maxêncio , em 313 , começou a concentrar-se em Roma , como sede única do império , foi Roma escolhida também como sede da igreja cristã . Mas , só alguns séculos depois foi o poder eclesiástico centralizado em Roma - razão porque a igreja católica grega , chamada ortodoxa , protestou contra essa inovação e acabou por se separar definitivamente do Ocidente , no século XI .
Nada disto teria sido possível se a cristandade , desde o início , estivesse convencida daquilo que os teólogos romanos de hoje procuram fazer crer a seus fiéis . Naquele tempo , cada bispo local era chefe espiritual independente em sua diocese . Em caso de conflito de opiniões , convocava-se um Concílio Ecumênico , que decidia , por maioria de votos , o que devia ser reconhecido como verdadeira doutrina de Jesus Cristo .
Só em 1870 conseguiu o bispo de Roma impor-se , definitivamente , como supremo chefe infalível da igreja , arrogando à sua pessoa a infalibilidade que , até essa data , residia na autoridade conjunta do Concilio Ecumênico .
E com isto , foi a " Democracia Cristã " suplantada pela " Ditadura Pontifícia " .
Prevaleceram os interesses da organização eclesiástica sobre a causa da verdade evangélica .

JESUS FUNDOU UMA IGREJA ?       

As numerosas igrejas e seitas cristãs do mundo afirmam que foram fundadas por Jesus Cristo . Entretanto , Jesus não fundou igreja alguma , muito menos algumas centenas delas . Todas as igrejas são de fundação humana , e , como tais , têm a sua finalidade pedagógica e educativa .
Jesus proclamou o " reino de Deus " , que não é uma organização externa , visível , de caráter jurídico , porque o " o reino de Deus está dentro de vós " . O reino de Deus é uma experiência divina dentro da alma humana , experiência que , depois , se revela na vida desse homem como verdade , santidade , amor , caridade , pureza , benevolência , alegria espiritual . O reino de Deus é " verdade , justiça e alegria no espírito santo " ( São Paulo )
A palavra " igreja " é derivada do termo ekklésía , que em latim deu ecclésia .
Ekklésia vem de ekkaléo ( ek = fora , kaléo = chamar , literalmente " chamar para fora " , ou evocar , selecionar do meio duma grande massa ) . A igreja representa , pois , uma elite sagrada selecionada do meio duma massa profana , é o pusillus grex ( pequeno rebanho ) de que o divino Mestre fala a seus discípulos ; são os " poucos escolhidos " tirados do meio dos " muitos chamados " ; são os que passaram pelo " caminho estreito " e pela " porta apertada " que conduzem ao reino de Deus .
A expressão " igreja " ocorre raríssimas vezes nos Evangelhos , ao passo que o termo " reino de Deus " ou " reino dos céus " é frequentíssimo .
O que determina a participação na igreja ou no reino de Deus não é uma determinada cerimônia ritual ( batismo ) , nem a aceitação desta ou daquela fórmula de credo , mas é o " renascimento pelo espírito " , como Jesus diz a Nicodemos : " Quem não renascer pelo espírito não pode entrar no reino de Deus " .
Se Jesus tivesse fundado uma igreja no sentido teológico da palavra , uma organização eclesiástica de caráter jurídico-burocrático , como são as igrejas humanas , não seria ele o Cristo ao qual " foi dado todo o poder no céu e na terra " ; não seria o " Filho Unigênito de Deus " , porque semelhante iniciativa teria amesquinhado o seu caráter . Neste caso , seria ele , quando muito , um inteligente sociólogo e hábil codificador de preceitos e proibições , como Tomás de Aquino ou Gregório VII . Atribuir a Jesus o espírito de qualquer Teologia Dogmática , Teologia Moral ou Código de Direito Eclesiástico , seria revoltante blasfêmia . Nenhum gênio cósmico de experiência divina se degrada ao ponto de organizar uma sociedade ou escrever um livro para garantir a perpetuação das suas doutrinas , porque tem ilimitada confiança na onipotência e imortalidade da Verdade em si mesma , sem escoras nem adjuntórios externos .
" Eu vos enviarei o espírito da Verdade , e ele vos introduzirá em toda a verdade e vos lembrará tudo quanto vos tenho dito , porque tomará do que é meu e vô-lo anunciará " - esta , sim , é a linguagem do gênio cósmico que baseia a eternidade da sua doutrina na presença e atuação infalível do espírito da Verdade , que não depende de nenhuma organização eclesiástica , como pensam certos teólogos , nem da elaboração dum livro , como opinam outro .
Nem a hierarquia eclesiástica nem a existência da Bíblia são o fundamento do Cristianismo ; mas é a atuação invisível do " espírito da Verdade " através dos séculos e milênios ; e essa presença e atividade do espírito de Deus não depende de nenhuma organização nem de um livro . " O espírito sopra onde quer " . " Eu estou convosco todos os dias até a consumação dos séculos " - esta indefectível presença do espírito do Cristo é que é a garantia única da perpetuidade e infalibilidade da igreja , contra a qual " não prevalecerão às potências do inferno " .
Por que então surgiram e surgem ainda tantas igrejas ?
As igrejas , como expedientes humanos , são relativamente necessárias , em face da imperfeição da nossa humanidade , que necessita ainda de muletas e escoras externas para sua evolução espiritual , prova de que lhe falta suficiente firmeza interna . Se os homens tivessem segurança interna não necessitariam dessas seguranças externas . Neste sentido , as igrejas cumprem o seu papel pedagógico - assim como uma mãe cumpre a sua missão guiando pela mão um filhinho incapaz de andar sozinho .
O mal não está na existência de igrejas , que são relativamente necessárias enquanto a humanidade não estiver devidamente cristificada e com perfeita autonomia espiritual ; o mal está em que essas igrejas se digam fundadas por Jesus Cristo e muitas delas não permitem a seus filhos ultrapassarem os limites dos dogmas por elas traçados como sendo revelação de Deus .
Assim como o dia mais glorioso para o educador é aquele em que ele se tornar supérfluo e dispensável , por ter levado seu educando à perfeita autonomia ético-espiritual - assim terá também a igreja cumprido integralmente a sua tarefa no dia e na hora em que ela se tornar supérflua , por ter conduzido as almas a Deus .
Infelizmente , as igrejas fazem da sua missão pedagógica uma profissão lucrativa para a classe privilegiada de seus ministros , servindo-se de palavras sagradas para cercarem de prestígio político-social os seus ministros e promoverem a sua prosperidade econômico-financeira , mantendo o povo na ignorância das grandes revelações de Deus , porquanto sabem eles que o homem conhecedor do espírito do Cristo passará , um dia , da heteronomia teológica para a autonomia espiritual .
A igreja deve ser educadora do povo - mas não intermediária entre o homem e Deus , fazendo depender da sua atuação ou não-atuação o efeito da redenção do Cristo ou sua frustração . O efeito da redenção do Cristo é casualmente independente da presença ou ausência de um ministro eclesiástico , embora este possa auxiliar a aplainar os caminhos que levam a essa redenção , suposto , naturalmente , que ele mesmo seja um verdadeiro remido .
" A religião da humanidade do futuro - escreveu o grande iniciado Radha Krishnan , antigo vice-presidente da Índia - será a mística " , isto é , o auto-conhecimento e a auto-realização .
Texto : Huberto Rohden 
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