segunda-feira, 15 de março de 2010

" Era pelo ano 3000 "

Acabava o sol de cortar a linha do horizonte levantino quando , no meio duma vasta planura , apareceu um vulto de porte heril , vestido duma túnica branca e dum manto cinzento . Parou no centro da planície e lançou olhares em derredor , como que à procura de alguma coisa .
Depois , encaminhou-se a um enorme montão de pedras , encimado por uma tabuleta , na qual se via meia dúzia de palavras escritas em linguagem e caracteres estranhos ; mas o solitário viandante , conhecedor de todos os idiomas do mundo , logo compreendeu o sentido da legenda . Traduzida em nossa língua , dizia :
" Ilha de Manhattan , propriedade da Tribo Invencível " .
Mais além , havia umas palhoças , e ao pé de uma delas estava sentado um grupo de homens seminus ocupados na confecção e no conserto de redes de pescar .
O viandante da túnica branca aproximou-se dos homens mais idosos , que parecia ser uma espécie de chefe ou cacique . - Segundo tradição antiquíssima , foi esta ilha de Manhattan propriedade da nossa Tribo Invencível . Até o nome é da nossa língua . Mais tarde - faz muitos séculos - nos foi ela roubada por uns invasores de cara branca , como a tua , amigo . Mas tu não pareces vir com más intenções . Podes ficar connosco . Agora , depois que os caras-brancas se mataram todos uns aos outros com aquelas horríveis máquinas de raios e trovões , voltou a ilha a ser propriedade nossa . Infelizmente , já não é tão bela como outrora . Olha só este fundão ...
O chefe apontou para um abismo que parecia enorme cratera de vulcão extinto , e acrescentou , estendendo a mão direita :
- Cuidado , não te aproximes ! Pode ser que o ar em derredor ainda esteja envenenado . Há séculos que foi aberto pelas máquinas de raios e trovões dos caras-brancas , que haviam construído aqui , por cima e ao redor da nossa ilha , uma grande cidade . Muita gente nossa morreu com as irradiações infernais que aqueles engenhos deixaram na terra e no ar . Houve uma invasão de maus espíritos ...
Para as bandas além fica o grande rio , que os caras-brancas chamavam Hudson , mas que agora tem outra vez um nome decente em nossa língua .
Lenta e pensativamente foi o homem da túnica branca andando pela ilha e arredores , imenso deserto caótico de ruínas , entremeadas de vegetação rasteira e doentia , e rasgada de dezenas de horrorosas crateras cheias de água escura .
Neste ponto - explicou o chefe , apontando para uma vasta planície rochosa semeada de gigantescos blocos de pedra - estava situado , como diziam nossos antepassados , o maior edifício do mundo que os caras-brancas haviam erguido . Sabes ler o que está gravado aí nesse rochedo ?
O homem da túnica branca parou e leu : Empire State Building ...


* * *

No dia seguinte , ninguém mais encontrou vestígio do estranho adventício . Constou , mais tarde , que nesse mesmo dia ele foi encontrado a andar tranquilamente sobre as águas do Oceano Atlântico , rumo leste . Possuía o dom inexplicável de isentar o seu corpo da lei da gravidade e transportar-se com a velocidade do pensamento a qualquer distância .
Em certa zona do mar fez alto e deu uma série de voltas sobre as águas , como que à procura de alguma coisa . Finalmente , parou diante duma enorme bóia flutuante , acorrentada no fundo do oceano .
Sobre o dorso escuro da bóia estavam escritas , com tinta vermelha , estas palavras : No fundo destas águas jazem as ruínas de Londres .
Ainda se quedava o homem da túnica branca diante da bóia flutuante , quando viu um barco de pescadores a pouca distância .
Firmou os pés na ponta arredondada duma pedra que emergia das águas verde-escuras e fez sinal aos homens que se aproximassem , pois eles estavam tomados de pavor com a inesperada visão de um ser humano sobre as águas . Com alguma relutância acercaram-se do desconhecido , que parecia ter emergido do seio do mar . Falavam uma língua parecida com os lendários vikings , de milênios idos .
Pouco a pouco criaram ânimo e ousaram falar com o vulto estranho .
- Estás visitando o lugar das antigas ilhas britânicas ? - perguntou um dos pescadores . - Será difícil localizá-las . Ouvimos dos nossos antepassados que os engenhos da morte que vieram dos céus da Sibéria reduziram tudo a fumaça e cinzas . Foi numa única noite . Sobrou apenas esse rochedo em que estás . Por muito tempo ninguém mais pôde pescar por aqui . Estava tudo envenenado . Até às costas das nossas terras apareciam peixes tão envenenados que muitos dos nossos patrícios que deles se alimentaram morreram .
- Um dos nossos entendidos - acrescentou outro pescador - julga ter localizado o ponto onde , outrora , se erguia a catedral de Westminster de que falam livros antigos ; ancorou nesse lugar a bóia que vês aí . Mas ninguém sabe ao certo se esse é o ponto exato .


* * *

Alguns dias mais tarde , foi o homem da túnica branca encontrado às margens do Tibre . Procurava localizar o ponto onde , em séculos passados , se erguera o suntuoso palácio daquele homem de veste talar de seda branca e tríplice coroa na cabeça , que em 2000 tão eloquentemente defendera a causa do cristianismo econômico . Nada conseguiu , porque toda a vasta área da antiga cidade das sete colinas estava coberta de água , transformada num imenso lago . E que a foz e o leito do Tibre estavam a tal ponto obstruídos de ruínas de casas , palácios e igrejas que as águas do rio , represadas , se haviam espraiado muitos quilômetros fora do seu leito natural , formando aquele vasto lago de água doce .
Mais além , à margem superior da lagoa , avistavam-se umas casinhas singelas , habitadas por uns agricultores não menos simples .
Quando viram o homem da túnica branca convidaram-no amigavelmente para tomar um refresco em suas casas . O peregrino aceitou o convite .
Evocando obscuras reminiscências , conseguiram esses lavradores reconstruir , até certo ponto , a história dos últimos séculos . O inquilino do palácio , disseram , que se considerava único representante de Deus sobre a terra , fora obrigado a fugir clandestinamente para o outro lado do mar , porque homens vindos de um vasto país ao norte da Ásia e da Europa invadiram a Itália e espalharam uma ideologia incompatível com as doutrinas desse homem . Por isso , depois daqueles emissários frustados nos seus intentos , vieram milhares de máquinas mortíferas daquele mesmo país e arrasaram totalmente a vetusta cidade às margens do Tibre .
- Por muito tempo - acrescentou um dos lavradores - aquele poderoso país do norte foi senhor do mundo , daquém e dalém-mar .
O próprio fugitivo de Roma foi preso e morto no país dalém-mar aonde fora residir . Finalmente , porém , aquele mesmo país do norte da Ásia e da Europa , de tão rico e poderoso , foi apodrecendo no seu luxo e no seu grande orgulho , e hoje também ele é uma ruína e um deserto , como os outros .


* * *

Ainda por muito tempo foi o homem da capa branca visitando outros países e outras cidades , deste e do outro lado das grandes águas ; mas em parte alguma encontrou vestígio das glórias da ciência e da técnica que cobriam a face da terra por ocasião da sua tentativa de voltar ao mundo dos homens , em princípios do terceiro milênio . Por toda a parte , ruínas e destruição . Só nos campos encontrou homens simples , calmos , serenos , de vida humilde e boa .
Um dia , retirou-se o estranho viandante para uma vasta planície , não longe do lugar onde ele , diversos milênios atrás , espalhara pela primeira vez a sua doutrina grandiosamente humilde , humildemente grandiosa , doutrina que os dominadores do mundo não puderam ou não quiseram compreender .
Para as bandas do leste estendia-se um grande lago de águas extremamente límpidas e azuis , em cujas margens se erguiam casinhas brancas e tranquilas rodeadas de sorridentes jardins e pomares .
No interior desses lares era maior ainda do que fora a benfazeja serenidade , atingindo , porém , a culminância da sua dinâmica beatitude nas almas dos homens que habitavam esses risonhos santuários .
O estranho vulto de túnica branca foi per lustrando , lenta e pensativamente , essas e outras terras , auscultando o ritimo da vida pura que pulsava através de todas as artérias dos indivíduos e da sociedade . Não encontrou policiamento nem códigos de leis nem armas mortíferas em parte alguma , nem outra coisa que perturbasse a paz dinâmica e exultante felicidade desse pequeno mundo .
Dirigiu-se a uma colina , e milhares de homens , mulheres e crianças foram em seguimento do homem , que não conheciam pelos sentidos do corpo nem pelas faculdades da mente , mas que a afinidade espiritual das suas almas lhes revelava como seu amigo e mestre .
Sentou-se o misterioso viandante no topo da colina e , abrindo os lábios , disse :

" Bem-aventurados os pobres pelo espírito - porque deles é o reino dos céus .

" Bem-aventurados os puros de coração - porque eles verão a Deus .

" Bem-aventurados os que fazem a paz - porque eles serão chamados filhos de Deus .

" Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça - porque eles serão saciados .

" Bem-aventurados os misericordiosos - porque eles alcançarão misericórdia .

" Bem-aventurados os que andam tristes - porque eles serão consolados .

" Bem-aventurados os mansos - porque eles possuirão a terra .

" Bem-aventurados os que sofrem perseguição por causa da justiça - porque deles é o reino dos céus " ...
Quando o mestre terminou de dizer estas coisas , brevíssimas e imensas , era tão grande o silêncio em derredor que até parecia audível o jubiloso latejar de milhares de corações e o brilho de milhares de olhos parecia iluminar as verdes campinas circunjacentes ... Todos os ouvintes tinham a impressão estranha de perceberem ecos de vozes perdidas na vastidão dos tempos e dos espaços , vozes cujo sentido real só agora emergia das profundezas de suas almas .
E , cansados de milênios de erros e sofrimentos , de vãos tentames de salvação pela ciência e técnicas humanas , abraçaram em cheio a mensagem divina que brotava dos lábios e do coração do homem da túnica branca .
Tão profunda e intensa era a felicidade desses homens que se extravasava com irresistível veemência em torrentes de espontânea bondade e simpatia ativa . Sentiam-se todos um só coração e uma só alma ; não havia um só indigente entre eles , porque os que possuíam demais davam do seu supérfluo para aliviar as necessidades dos que tinham menos .
Compreenderam todos que aparecera no meio deles o Redentor e fizera despontar dentro deles o reino de Deus - a realização integral do amor de Deus manifestado pelo amor dos homens .
Foi nessa gloriosa manhã de primavera cósmica que o filho pródigo depois de ter demandado terras estranhas , esbanjando o patrimônio da herança paterna , mendigado favores a seus tiranos e sofrido fome e degradação no meio de imundas manadas de seres irracionais , foi nessa manhã que ele , purificado por inauditos sofrimentos , por ele mesmo engendrados , resolveu regressar à casa paterna - e houve grande alegria , música e lauto festim ...
E nasceu entre os homens um novo céu e uma nova terra - a paz do Cristo no reino do Cristo .
A humanidade , cristificada , celebrou o segundo advento do Cristo - o seu advento real , definitivo , pela compreensão e pelo amor ativo e universal ...
Foi proclamado sobre a face da terra o reino de Deus ...
Aleluia ! ...
Texto : Huberto Rohden
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