domingo, 28 de outubro de 2018

Breves Considerações Sobre o Tempo e o Espaço Sagrados  

Alcançar o " verdadeiro eu " é uma tarefa que pode não ser fácil por uma série de razões .
Por que é assim tão difícil ? Um dos motivos é que nós vivemos " dentro " do espaço e do tempo .
Não é difícil encontrar a resposta , o difícil é compreendê-la . O problema é que , apesar de o tempo e o espaço serem aparentemente algo " externo " , como fatos concretos , no final das contas eles também estão profundamente arraigados no mundo " interno " da mente . Podemos imaginar que o mundo " externo " é comum ou profano e o mundo " interno " , embora quase sempre ligado a acontecimentos concretos , é como um fluxo sagrado de tempo na sua essência . Algumas vezes , esse fluxo sagrado não corre na mesma " velocidade " que o ritmo do relógio .
O professor da Universidade do Texas , E. C. G. Sudarshan , conta o seguinte mito retirado do texto Vishnu Purana que ilustra essa conexão :

                No Vishnu Purana , há um mito sobre um sábio chamado Nárada , que pede a Vishnu para explicar por que as pessoas são iludidas a viver no tempo profano quando sempre puderam viver no tempo sagrado . Vishnu se dispõe a responder essa pergunta , mas pede a Nárada que antes vá pegar um copo d"água . Nárada vai à casa mais próxima e pede um copo d"água . Uma jovem muito bonita e atraente abre a porta .
Nárada é completamente cativado pelo seu charme e , esquecendo-se do copo d"água e de seu voto de castidade , ele corteja a moça e pede sua mão em casamento . Depois do casamento , passam a morar juntos , e , quando chega a hora certa , têm dois filhos com um ano de diferença .
                Sua vida é feliz , até que uma inesperada enchente destrói toda a vizinhança , inclusive seu lar . Eles tentam fugir , mas a enchente aumenta e a correnteza se torna cada vez mais forte , a ponto de carregar primeiro um filho , depois o outro , e , por fim , sua esposa . Nárada mal consegue se segurar na árvore e está em estado profundo de choque por causa da tragédia que se abateu sobre ele . Então , enquanto espera , ele ouve a voz de Vishnu perguntando " onde está meu copo d'água ? " , pois ainda está com sede . Nárada , então , percebe que durante todo esse tempo ele esteve parado no mesmo lugar e apenas alguns minutos haviam se passado !

Muitos já experimentaram , em algum momento da vida , a sensação inigualável de que o tempo passou rápido de mais ou , talvez , muito lentamente .
Eu sei que quando me sento para escrever um livro como este , por vários minutos eu me esforço para começar , mais assim que encontro o meu ritmo e as palavras começam a fluir , perco totalmente a noção do tempo . As horas passam , e eu simplesmente não sinto isso acontecer . Por outro lado , o tempo parece andar muito devagar quando me envolvo em alguma situação embaraçosa ou quando vou ao dentista e escuto o som da broca . Os cientistas , e em particular os psicólogos , chamam essa experiência relativa do tempo de " tempo subjetivo " .
O tempo objetivo , ao contrário , é " aquilo " que acreditamos ser medido pelos relógios e por ritmos ou frequências . Na realidade , todos os relógios funcionam por meio de ritmos comparados ; eles representam um tempo objetivo pelo simples fato de contarem repetições . Pode não parecer , mas sem dúvida o que ocorre é uma comparação de ritmos Por exemplo : se preferir contar o número de oscilações de um pêndulo , como vez Galileu certa manhã muito tempo atrás , durante a missa dominical , ao observar o balanço de um lustre , você estará , na verdade , comparando o número de oscilações que vê com seu próprio ritmo interno subjetivo , por exemplo , as batidas do seu coração ou o número de vezes que pisca os olhos ou até mesmo o número de vezes que uma palavra surge em sua mente . Pense sobre o assunto . Como saberemos que um pêndulo serve para ser um " bom " relógio - um que sustente o tempo " verdadeiro " - se não for por meio da comparação ? ( Note como os adjetivos " bom " e " verdadeiro " surgem com sutileza nesse contexto . ) Nós certamente comparamos um relógio de origem duvidosa com outro que confiamos marcar o tempo bom . Mesmo assim , embora ajustemos nosso relógio a partir de um contador de tempo confiável , em muitos casos acabamos percebendo que os relógios mecânicos estão incorretos ao compará-los com a nossa noção interna de tempo .
A mente humana é capaz de discernir diferenças dentro de uma ampla gama de ritmos , desde a incrivelmente rápida vibração de um cristal de quartzo em um relógio até a jornada anual da Terra em torno do Sol , e , baseada nessas diferenças , constrói uma " linha do tempo " objetiva , uma imagem ou extensão de tempo que todos nós vemos e com a qual concordamos . Para fazer essas comparações , é preciso uma noção de tempo subjetiva , interna .
Contudo , como vimos ao analisar as cinco flutuações da mente no capítulo um , essa noção de tempo talvez seja uma ilusão que nos faz acreditar que alguma coisa que aconteceu está acontecendo agora ou acontecerá novamente . No final das contas , essa conexão interna e talvez ilusória dada a nós pelo grande Deus do tempo é a primeira corrente que nos prende ao tempo e ao espaço e nos sujeita ao tempo . Sem essa conexão , as vibrações da música e do som não teriam o poder de nos cativar , nem o Sol poderia nascer .
Além disso , não haveria maré alta e baixa nem mudança entre as estações do ano . Mesmo assim , apesar do fato de esses ritmos naturais serem cíclicos , nós do Ocidente os interpretamos como algo bem diferente . Aprendemos a mapeá-los linearmente ,insinuando que , apesar de haver uma repetição , eles nunca ocorrem exatamente da mesma maneira . Mas que coisa é essa que está mudando ? Essa noção de que algo muda nos proporciona uma sensação que rotulamos de " passagem do tempo " e apreendemos a enxergar essa experiência em termos de linearidade .

Linha do Tempo             

A noção de tempo linear é uma construção objetiva da mente humana que está particularmente arraigada na forma como os ocidentais encaram a vida .
Nós do Ocidente damos mais valor ao tempo contado pelo relógio objetivo , ou mecânico , do que ao senso de tempo interior , subjetivo . No final , reduzimos todas as sensações subjetivas de tempo a uma mera linha objetiva que todos concordaram seguir . Mesmo assim , nosso senso de tempo interior , subjetivo , é tão real quanto qualquer outra sensação que possamos ter . Acreditamos que , por não ser possível medi-lo , então não pode ser real . Mas o que pode ser mais real para nós do que o senso de tempo interior sem o qual não seria possível sentir variações rítmicas como a música e até mesmo a frequência de nossos pensamentos e sentimentos ? É provável que não sejamos capazes de compará-lo com o senso temporal de outra pessoa , mas não é por isso que essa experiência seja menos real .
Abandonamos nosso senso de tempo interior não em razão dos ensinamentos do Gita , mas para substituí-lo por um senso externo e mais amplamente aceito que chamamos de tempo do relógio . Ainda assim , o tempo linear do relógio não é , de fato , mais " externo " que o tempo subjetivo . Ele também é abstrato e imaginário . Mas , a partir desse fio ou linha de tempo imaginária e objetiva , criamos uma enorme quantidade de inovações criativas e tecnológicas . Criamos , por exemplo , a semana de 40 horas de trabalho , as jornadas das 9 às 17 horas , a rotina , as férias de duas ou três semanas , as oportunidades iguais de emprego , a mesma carga horária para todos os empregados , a hora extra , o corpo mole e assim por diante . Já no campo das invenções tecnológicas , quase todas , no fundo , utilizam o tempo linear . Afinal , o que são essas invenções além de formas de economizar tempo para que , assim , possamos aumentar nossa produtividade semanal , mensal e anual , ou ainda , para nos ajudar a usufruir do tempo extra que ganhamos ?
Andamos em uma corda bamba que se estende desde o momento do nosso nascimento até o nosso último suspiro . Essa noção linear de tempo parece fazer sentido para nós e não há dúvida de que parece ser igualitária e " real " ; no entanto , ela existe , em última análise , graças a uma percepção subjetiva . No interior da mente , existe um senso de tempo que nos diz , mesmo sem ter um relógio no pulso , o que é muito demorado e o que não é . Nós aprimoramos essa capacidade para sermos aptos a realizar uma série de tarefas diárias , desde esperar na fila do caixa da mercearia até escovar os dentes antes de dormir .
Relógios e calendários certamente foram inventados para mostrar esse senso de tempo interior , tornando possível o ato de comparar . Se não comparássemos o tempo do relógio com o nosso senso de tempo interior e subjetivo , não teríamos como avaliar a diferença entre sonhos e fantasias da realidade , que neste momento acreditamos estar vivendo .
Sem esse senso de tempo interior , não seríamos capazes de avaliar o tamanho de um polegar ou o peso de uma árvore , para citar alguns exemplos mais sofisticados , a altura de um arranha-céu , a altitude de voo de um jato comercial moderno ou a distância até o Sol e até outras estrelas e galáxias . Nossa sensação temporal interna nos permite entender e mensurar o espaço simplesmente porque é preciso tempo e repetição para que isso aconteça . Pode até parecer que você não esteja repetindo nada ao usar seus olhos para medir o tamanho do seu polegar com uma fita métrica , mas a luz que chega aos seus olhos resume-se a uma série de frequências , e essas rápidas repetições , por sua vez , são as responsáveis pelo sentido da visão .
Muitas outras sociedades ocidentais também desenvolveram uma ideia linear de tempo . Na verdade , de uma forma ou de outra , em certo momento , com um pouco de dificuldade , todas as civilizações adotaram ou formaram um conceito linear de tempo , que desse forma às suas atitudes e que permitisse que eles tivessem uma perspectiva histórica e antecipassem o futuro . O professor Sudarshan lembra que as duas grandes civilizações da Ásia , a chinesa e a indiana , não encaravam o tempo da mesma forma que as civilizações ocidentais . Os chineses mantinham uma cronologia meticulosa , mas valorizavam o tempo ancestral mais que o tempo presente . Os ancestrais mais próximos eram considerados altamente honrados e a missão do indivíduo era trabalhar arduamente pelo bem da sociedade . Enquanto o povo trabalhasse duro e não se esquecesse de seus ancestrais , a sociedade progrediria e a vida seria boa para todos . A sociedade indiana , por outro lado , " parece entender que a forma como o tempo é sentido depende do estado de consciência do indivíduo e , portanto , o tempo funciona com uma variedade de maneiras subjetivas . Sendo assim , a cronologia na Índia é algo em que não se pode confiar , em termos de linearidade objetiva , e a maioria dos acontecimentos simplesmente ocorreu ' muito tempo atrás ' " . Isso quer dizer que a mente indiana não encara o tempo como uma simples armação imaginária , ou seja , algo projetado pela mente " exterior " como um esqueleto ou uma estrutura sobre a qual as situações verdadeiras do mundo são medidas e comparadas. Em vez disso , o tempo existe de forma integrada ao espaço e à matéria é inseparável deles , ou seja , ele pode ser mudado de maneira não-linear .


Ciclos e Sonhos          

Os chineses e indianos não são os únicos povos a encarar o tempo de forma diferente à dos ocidentais . Em um capítulo do meu livro The Dreaming Universe , escrevo sobre os povos aborígenes da Austrália . W . H . Stanner , em seu livro White Man Got No Dreaming , fala sobre o " Tempo do Sonho " , ou Alcheringa , da tribo Arunta ou Aranda , que foi revelado para o mundo pelas mãos de dois ingleses : o antropólogo Baldwin Spencer e o pesquisador Frank Gillen . Stanner prefere chamá-lo de " O Sonhar " ou simplesmente " Sonhar " . O " Tempo do Sonho " é um termo curioso , mas , por incrível que pareça , não é originário dos povos aborígenes australianos . Na verdade , a expressão foi cunhada por Gillen , em 1896 , depois de tentar entender o conceito aborígene de tempo , e foi usada por Gillen e Spencer em seu trabalho de 1899 , considerado clássico hoje em dia . Para os aborígenes , Alcheringa não significa exatamente tempo do sonho , e está mais para lei ou compreensão sagrada da vida . Mesmo assim , o tempo está inserido nessa concepção .
O " Tempo do Sonho " se refere , primeiramente , a uma época de heróis que viveram antes da existência da natureza e do homem na forma atual . Uma época distante , como nas histórias que começam com " Era uma vez . . . " . Ou seja , nem o tempo nem a história estão , na realidade , pressupostos no significado do sonhar . O tempo , como um conceito abstrato e objetivo , não existe nos idiomas aborígenes . O sonhar não pode ser compreendido em termos de história também . O sonhar se refere a um estado complexo que não tem relação nenhuma com a descrição ocidental linear do tempo e com as formas lógicas de pensar do Ocidente .
De acordo com o estudioso australiano W . Love , os primeiros povos aborígenes australianos , quando chegaram à Austrália entre 40 mil e 120 mil anos atrás , encontraram uma fauna e uma flora bem diferentes das que conheciam em seu próprio território . Essa macro fauna , como Love a chama , tornou-se , nos mitos e lendas , os animais do " Tempo do Sonho " , suas histórias tornaram-se modelos para o comportamento dos homens , e suas imagens foram sacralizadas em relíquias cerimoniais . Stanner explica que um aborígene costuma considerar que o seu totem ( ou o lugar de onde veio o seu espírito ) é o seu " sonhar " . Também é comum ele considerar como se a lei da tribo fosse o seu " sonhar " .
Segundo um outro especialista , Ebenezer A . Adejunto , o " Tempo do Sonhar " não era apenas uma fantasia do povo aborígene " . Ao contrário , os sonhos têm tanto significado para eles quanto têm hoje em dia para psicólogos e psiquiatras . 
Os mitos do " Tempo do Sonhar " contêm registros associados a certos lugares geográficos , interesses sociológicos e experiências pessoais . Já que os aborígenes reencenam as histórias do " Tempo do Sonho " por meio de rituais , podemos deduzir que o passado , presente e futuro coexistem no " Tempo do Sonho " como se fossem mundos paralelos de experiência . Juntos , esses domínios formam a realidade , na qual a nossa sensação de tempo presente é meramente uma pequena parte .
O " Tempo do Sonho " é eterno e atemporal , como também os espíritos do povo ligados a esse mundo : eles estão no passado , estarão no futuro , no coração e na mente das crianças que ainda não nasceram , e estão agora no coração e na mente do povo da nossa terra . Os aborígenes encaram seu povo e toda a humanidade dessa forma . Não há divisão entre tempo e eternidade ; todo o tempo é , na essência , tempo presente . Para manter essa consciência viva , é preciso cantar e dançar , e esses atos criativos passam a ser a reencarnação repetida do espírito , reencenada por meio de incontáveis repetições de formas humanas . Ao se manter a par das histórias e lendas , o espírito vivencia uma sensação verdadeira de que está registrando seu próprio percurso na vida , seu caminho e padrão ao longo do tempo histórico .
Essa reencarnação funciona como uma solução para a alienação dos homens sobre seu próprio planeta . Somos todos totalmente dependentes da Terra para sobreviver . A cultura aborígene não enxerga a natureza separadamente , como faz o mundo científico do Ocidente , que se ajusta à vida no planeta por meio da ciência aplicada . Em vez disso , ela se vê como parte da natureza .
Os aborígenes australianos da atualidade conhecem bem o tempo linear , e , mesmo assim , ainda se referem ao tempo de sua própria maneira original .
Portanto , suas construções gramaticais em inglês podem parecer esquisitas aos ouvidos ocidentais , mas eu garanto que a forma como usam o inglês está correta , de acordo com sua própria noção de tempo . É como se diz o poema que um " camarada " negro já de idade contou para Staller :

                White man got no dreaming .                     Homem branco não tem sonhar
                  Him go " nother way " .                              Ele vai por " outro caminho " .
                  White man , him go different .                    O homem branco , ele vai diferente .
                  Him got road belong himself .                     Ele acha que a estrada pertence a ele .


O tempo para os aborígenes é algo bastante concreto ; é baseado nas observações que fazem dos ritmos da natureza , como as estações do ano e os ciclos lunares e solares . Portanto , o tempo é marcado não por pontos em uma linha que se estende de menos infinito para mais infinito , como na concepção newtoniana do mundo , mas sim por ciclo : o tempo é contado por meio de recorrências de ciclos . O tempo de fatos rotineiros é marcado pela posição do Sol . Nativos do centro da Austrália marcam o tempo em " sonos " ; eles dizem que votarão para um lugar depois de muitos " sonos " ou noites . A duração do tempo é marcada por todos os processos do dia-a-dia . Por exemplo : uma hora pode ser marcada pelo tempo que leva para cozinhar um inhame . Um momento pode ser o piscar dos olhos de um caranguejo . Períodos mais longos podem ser contados pela duração de uma determinada viagem . Sendo assim , os calendários não são definitivos . O importante é o tempo concreto do " agora " .
Quando o tempo é entendido como algo circular e sagrado , ele parece ter uma qualidade imagética . Essa qualidade não é exclusiva dos povos aborígenes .
Acredito que toda a humanidade sente essa qualidade imagética do tempo .
Mas nós do Ocidente tendemos a desprezar essa percepção subjetiva ao escolher seguir uma concepção linear . Gosto de pensar sobre essa qualidade imagética como se fosse uma grande roda que gira ao longo da linha reta imaginária de nosso tempo linear . 
    
                                                  
                                                             
            
             
 texto : do livro Viagem no Tempo ( autor Fred Alan Wolf PH. D . )
Pág 35 a 41 .              

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